Um advogado estagiário idealista é colocado junto de um patrono veterano, senhor do seu reino e conhecedor das “tricas” do sector, e que por vezes defende mais os seus interesses do que os dos seus constituintes. No meio, há duas mulheres que amam o mesmo homem, que morreu, e à falta de corpo presente dedicam-se a disputar a sua fortuna. Existe um solicitador desonesto e a sala de espera de um tribunal parece a de um consultório médico, onde em vez de “espera” se devia chamar “demora”. Diante de um juiz as coisas não são melhores. O sistema rebenta pelas costuras e o estagiário vê o que realmente quer dizer Justiça. Cenários familiares? Desengane-se quem pensar mal. Tudo acaba como deve acabar, já que mesmo “de olhos vendados” a verdade vem ao de cima, como o azeite.
É a tagarelar que os actores descansam entre cenas. As mesas de metal estão dispostas numa fila longa, com cadeiras de alumínio, pouco confortáveis. Um pequeno ecrã de televisão, colocado sobre um suporte preso à parede, no fundo da sala longitudinal, transmite em directo o ensaio que acontece “lá, do outro lado”, no palco. Os que estão “fora de cena” acusam o cansaço de semanas de ensaios, mas o sorriso não se altera. No entanto é fim de dia, o peso das horas passadas a trabalhar deixa as suas marcas, mas “quem corre por gosto não se cansa”.
Há semanas que andam “nisto”, chegam a casa “às tantas”. São mais de vinte os actores e figurantes da peça: “Letrado Chapado, Patrono de Gema” – Sátira e pintura das realidades macaenses – chapadinhas. “Somos todos escravos”, diz um dos actores que descansa. “Todas as noites e durante duas semanas, até à meia-noite, ensaiamos…”.
O grupo é amador, mas a seriedade com que encara a peça é profissional. Falam entre eles em cantonês e em português. O Patuá, dialecto macaense, a tal “língua doce”, desusada, é língua que quase ninguém fala, no entanto é cabeça de cartaz em todas as peças do grupo Dóci Papiaçám de Macau. O grupo é mítico na terra. Obra de esforço e, acima de tudo, perseverança, nasceu em 1993 quebrando um hiato de 16 anos, altura em que pela última vez se ouviu patuá num palco em Macau. E possivelmente no mundo.
Como dizem os seus fundadores, foi por pura “carolice” que se criou o grupo, mas também para salvar o dialecto macaense, votado ao esquecimento devido à idade dos últimos conhecedores da expressão. Sem muito alarido defende-se a elevação desta fala a Património da Humanidade, apesar de hoje apenas um punhado de gente a fale, outro punhado a entenda e alguns sublinhem o carácter pouco rigoroso do que é dito em palco.
Três dias antes
De volta aos ensaios. Estamos a três dias do grande momento. Não há azáfama nos corredores. Para os que não falam patuá, à força de repetir as deixas, decoram tudo. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, como diz uma das actrizes.
Miguel Senna Fernandes é o autor das peças do grupo e encenador. É a locomotiva do projecto, que vive a tempo inteiro, apesar de ser advogado e de ter uma vida profissional preenchida. Miguel move-se pelo palco como um “ditador”, dos pequenos e ‘simpáticos’, sempre com várias folhas de papel na mão. Ora está nos cantos, ora entra pelo palco e interrompe ensaios, ora gesticula, ri e faz rir e pede para que se repita uma cena.
Uma das “estrelas” da peça confessa que “ainda bem que ensaiámos muito”, caso contrário poderíamos ter surpresas. A particularidade deste trabalho, como os demais dos Dóci, é o facto de ser representada em várias línguas: português, cantonês, inglês, tagalo (uma das línguas das Filipinas) e patuá. Cada actor pode ter de passar de uma língua para a outra enquanto dura um diálogo. Ninguém pode engasgar-se.
Enquanto na sala de descanso se come e se bebe muita água, nos corredores que levam ao bastidor os passos marcam ritmos cadentes e suaves. Há sempre gente a ir e a vir, mas ninguém corre. Um pequeno grupo de mulheres, plantado à porta de um dos camarins, onde a maquilhadora D. Maria é rainha, conversa e ri-se muito. Brincam umas com as outras, contam tontarias do dia-a-dia. Parece que estão numa sala de chá, reunidas, ao fim de semana. Relaxadas depois de semanas de ensaios, pouco as enerva. Até de olhos fechados seriam capazes de encontrar o caminho do palco e de dizer as suas deixas.
Bastidor fantasma
No fundo do corredor há uma cortina de veludo grossa, para abafar os sons. É uma das entradas laterais do palco, que dá para o bastidor. Uma consola para o técnico de som está montada à esquerda da entrada. Ao lado, uma mesa rectangular grande, capaz de sentar umas dez pessoas, serve de apoio e tem revistas colocadas.
Fios e cabos cruzam os pés de quem por lá passa, atados com fita-cola isolante. A penumbra reina e focos de luzes fortes iluminam o palco, onde a acção se desenrola. Várias cadeiras estão espalhadas no bastidor, mas a maior parte dos técnicos e actores prefere ficar de pé. Alguns espreitam o palco através das cortinas que o separam dos bastidores, para ver o que está a ser feito. Não fossem todos ter outras profissões, pensaríamos que faziam disto o seu ganha-pão.
Entretanto, Miguel suspende mais uma cena. Não está bem feita, os actores têm de estar mais separados em palco, caso contrário ninguém os vê. Há que falar mais alto também, projectar a voz, fazer o som vir do fundo. A interrupção devolve alguma vida ao bastidor, cuja vida se manteve suspensa enquanto a cena decorria, num silêncio escuro. Alguém aproveita para sair, outras pessoas materializam-se através da pesada cortina que chupa toda a luz exterior, do corredor, onde as mulheres continuam a tagarelar.
Há risos e finalmente ouvem-se passos. Parece que do sepulcro renasceram almas.
“Dia D – 1”
Dando um salto no tempo, chegámos à véspera do espectáculo. É dia de ensaio geral, que acabou de começar. Ensaio com roupa e maquilhagem perfeita, tal como vai aparecer no espectáculo do dia seguinte, a pouco menos de 24 horas.
Miguel está agora sentado na plateia, bem ao centro, nos lugares reservados às “pessoas muito importantes” – os VIP. Está rodeado de amigos e familiares. É a hora da verdade que não vive só. Câmaras de televisão de vários canais acompanham o ensaio geral, jornalistas da imprensa e fotógrafos marcam presença. Todos são “expulsos” do bastidor, para não perturbar os actores e técnicos, assim como os figurantes. “As perguntas, por favor, no final do ensaio, e não fiquem aqui, agradecemos que saiam”, diz um membro da organização, de walkie-talkie na mão, maquilhado como se fosse representar. Descobrimos mais tarde que é da organização e figurante.
Miguel de repente deixa o cadeirão confortável e salta para o palco. Mexe-se muito esta noite. Agora está na penumbra, onde se mantém sempre. De lado, no palco, observa. Mas hoje as coisas correm bem. Há menos interrupções.
As pestanas falsas
No camarim da maquilhagem D. Maria, que segue o grupo Dóci desde a sua criação e já conhecia os seus fundadores antes, termina os toques finais neles e nelas. Algo que faz há 16 anos. A única coisa que não fazia era colocar pestanas falsas: “Antes não usávamos isso, mas agora elas colocam pestanas falsas. Fica bem, porque não?”. Como mini-estrelas, o teatro é uma oportunidade para os actores se reinventarem, nem que seja por umas horas, e serem algo mais.
O advogado estagiário Geraldo Vieira, uma das personagens principais da peça, está “nervosinho”. Com umas lentes de contacto castanhas claras, de base forte na cara e fato às riscas cinzento e cor creme, com a pasta na mão, prepara-se para o seu momento. Aliás, um dos seus momentos pois ao longo da peça ele serve de elo de ligação às demais personagens.
Entretanto elas vão passando pelo corredor, a caminho do bastidor, rumo ao palco, e todas levam lentes que lhes “agrandem” as íris e mudam a sua cor e têm a base bem espalhada. Parece que vão para uma passagem de modelos.
Fora dos focos
Todos os actores são muito comunicativos e adoram ser fotografados.
Profissionais a tempo inteiro nestas lides de palco e bastidores só mesmo os técnicos de som e de luz, que parecem não apreciar a ironia e sátira do que se representa. A cadência dos diálogos multi-língua é suave e entra-se bem na história, que é simples e divertida. As legendas estão em português e chinês e a peça foi representada duas vezes no âmbito do festival Internacional de Artes de Macau, como tem sido hábito.
Personagens principais da peça
Dr. Tibaldo Xavier: é o conhecido médico Alfredo Ritchie na vida real que incarna o veterano advogado, preguiçoso mas de bom fundo, que conhece meio mundo e dedica menos tempo à advocacia do que devia. Uma das personagens principais da peça, o Dr. Xavier tem uma filosofia na vida: “laisser faire, laisser passer”…
Geraldo Vieira: é o estagiário idealista, pronto a obedecer aos códigos e leis que decorou durante o tempo passado na faculdade. Não compreende as “tricas” do sistema e por vezes desespera devido à forma com que o seu patrono, Dr. Tibaldo Xavier, lida com a letra da Lei. Nada é como devia ser… Na vida real é Germano Guilherme, estudante no curso de tradução. Fala português, cantonês e inglês.
Fanni Lam: é a advogada correcta e bonita, que não aceita que os interesses dos colegas e solicitadores se sobreponham aos dos clientes. Trabalha com o solicitador chinês, que promete o mundo aos constituintes e nada entrega. Fanni é funcionária pública na vida real, chama-se Gigi Chiu e estreia-se num palco com “Letrado Chapado”.
Docilita: incarna uma empregada Filipina de alguma sedução e que se sente discriminada pelo patrão. Na vida real é “Babe Tree” e vive em Hong Kong, dedicando-se ao meio artístico. É das mais extrovertidas actrizes da peça, dentro e fora dela. É responsável por grande parte da animação nos ensaios e pelas rizadas do público. “Babe” não fala português: domina o cantonês, o tagalo e o inglês.
Iolanda: é filha de Adelaide, a primeira mulher do morto, que tenta chamar a mãe à razão. Irritadiça, amua quando a mãe não se comporta como deve comportar-se – diante do juiz, advogados ou de quem seja. O morto chama-se A. Ramalho. A actriz chama-se Guiomar Pedruco.
Minabela: representa uma das mulheres do morto, que viveu “em concubinato” e reclama a sua fortuna. É uma mulher sedutora, dona de si e teimosa. Acomodada a uma vida de benesses, não quer abrir mão do que teve e pode ter. Enrola-se num estratagema para convencer a justiça do seu direito, mas confrontada com responsabilidades legais, acaba por mostrar o seu lado “real” na peça. É defendida na peça pelo advogado português incarnado por José Nascimento. Na vida real chama-se Nina Lichtenstein, empresária. A sua primeira participação num grupo de teatro foi há dez anos, com os Dóci Papiaçam de Macau…
Advogado chinês: faz desesperar Fanni Lam pela falta de rigor com que lida com os assuntos e pelas falsas promessas que faz aos clientes. A sua vida gira em torno do dinheiro e dos clientes que consegue encaminhar para o escritório de advogados. É ganancioso e altivo. Na vida real é Leon Lou, actor amador que tem várias empresas ligadas ao sector do entretenimento. Há mais de vinte anos que pisa palcos em Macau e em Hong Kong.
Advogado português: representa Minabela e não faz bom trabalho. Não ajuda muito a sua falta de honestidade. Minabela perde porque o seu advogado não estudou o caso adequadamente. Na vida real José Nascimento é empregado bancário reformado.
Nuno S. Fernandes: tem 85 anos e é o mais velho membro do grupo. Faz de si mesmo, músico na vida real do grupo “Tuna de Macau”. Vestido de presidiário, entretém o público com canções que o seu grupo criou, tocando o baixo. Na peça a sua formação pede emprestado o nome de “Trio Los Guantanameros”.
Miguel Senna Fernandes: encenador e um dos fundadores do Grupo Papiaçam de Macau, é advogado na vida real e um dos grandes impulsionadores da cultura Macaense e do Patuá em Macau. Activo em várias frentes da vida social de Macau, vive entre almoços, reuniões, telefonemas e a resolver problemas dos outros…