Os obituários fazem-se de datas, de factos, da obra feita e da sua relevância. No caso dos pintores, acrescentam-se prémios, distinções, fases e correntes artísticas, movimentos, influências e influenciados. E os quadros que ficam nas paredes.
Em Macau, a morte de Nuno Barreto tem outros significados. Foi a terra onde mais pintou e, segundo alguns, aquela onde o serígrafo, chegado do Porto em 1988, descobriu efectivamente a pintura. Barreto registou em tela o que o Oriente lhe disse. Por isso, é um pintor de Macau. Mas é-o também pelo que aqui deixou: alunos, amizades, laços, companheirismo.
Barreto conheceu o território na década de 1980 e acabou por aqui se fixar em 1988. Veio para dirigir a Academia de Artes Visuais, à época sob a alçada do Instituto Cultural, e que mais tarde foi integrada no Instituto Politécnico de Macau. Como pedagogo, enquanto formador, deixou uma obra significativa, pela forma como se dedicou ao projecto, aos alunos, à arte maior que é a partilha do que se sabe. “O trabalho desenvolvido por Nuno Barreto, quer como artista plástico, mas principalmente como grande impulsionador do ensino artístico, através da Academia de Artes Visuais e, depois, na Escola de Artes do Instituto Politécnico de Macau, faz-me considerá-lo um pintor de Macau”, nota Carlos Marreiros, ex-presidente do Instituto Cultural, arquitecto, pintor e amigo.
Era um pedagogo dedicado. Mas para Luís Sá Cunha, amigo de longa data, o substantivo não basta para recordar Nuno Barreto. “Era mais do que isso, era um santo a distribuir pão e pedacinhos, a partilhar com os outros a vida partida em pedaços de arte. O Nuno era assim.”
Era também “bondade, humanidade, cultura, honestidade artística, votação e convívio e amizade, humor, fraternidade, simplicidade, rigor pedagógico e entusiasmo pela vida. Sobretudo, entusiasmo pela vida. Aquele fascínio pelas pequenas coisas em que detinha encantadamente a sua sensível atenção”, descreve Sá Cunha. Era mais do que a obra que deixou, feita de imensas telas.
Geometrista, um pintor que gostava do figurativo e de ironias, Nuno Barreto pintou labirintos e pessoas, a Macau fervilhante dos anos 90. “Representa uma fase de Macau, a última década antes da transição. Pintou gostos, pensamentos, fez isto mais do que qualquer artista. Os seus quadros foram também copiados mais do que os de qualquer outro artista, foi uma vítima das imitações”, observa o pintor Konstantin Bessmertny. “Mas foi, de facto, um artista de Macau.”
Barreto absorveu cores, motivos, pormenores de eleição do Oriente, os enquadramentos de janelas e bambus citadinos que seguram arranha-céus em contra-luz. Mas também pintou os portugueses e as suas ironias, como a imagem de 1999 que fixou em “Embarque no Pátria I” – a despedida portuguesa da administração de Macau.
“Creio que algumas telas dele podiam expor-se numa sala, para um professor sensível, apontando com uma vara, ir explicando toda aquela Macau que conhecemos naquele tempo”, imagina Luís Sá Cunha.
O tempo de Macau mudou, Nuno Barreto voltou à sua outra terra – o Porto -, continuou a sentir Macau e a cidade não o esqueceu. Nascido em 1941, licenciou-se na Escola Superior de Belas-Artes do Porto em 1966. Irmão do sociólogo António Barreto, com ele divulgou a cultura em Trás-os-Montes, jovens universitários idealistas, autores da revista “Setentrião”.
Curso concluído, o pintor rumou a Londres, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, para uma pós-graduação na Saint Martin’s School of Arts.
O regresso a Portugal marca o início da sua carreira de pedagogo, como docente no Liceu Sá de Miranda, em Braga. Em 1973 torna-se professor assistente na Escola de Belas-Artes e três anos depois passa a dirigir a oficina de serigrafia da escola, onde permaneceu ao longo de 15 anos.
Foi nesta escola do Norte de Portugal que Guilherme Ung Vai Meng aprendeu a fazer serigrafia. O pintor recorda as qualidades técnicas e pedagógicas de Nuno Barreto, mas destaca o lado humano do homem que o recebeu “com toda a gentileza” no Porto, onde passou meio ano num estágio frequentado também por Mio Pang Fei e Victor Hugo Marreiros. “Dois anos depois, o Nuno veio para a minha terra. E pintou muito sobre Macau”, diz.
“Para mim, o Nuno nasceu em Macau. Porque a Macau que ele veio encontrar era irresistível. Macau penetrou-lhe as veias como um fluido, um filtro feiticeiro”, reforça Luís Sá Cunha. O próprio Nuno Barreto dizia que Macau foi uma terra que lhe entrou no sangue para nunca mais sair.
O pintor morreu no Porto, a 24 de Junho último. Tinha 69 anos. Morreu longe de Macau mas muito perto daqueles que, aqui, ainda falam dele no presente e com sorrisos, porque Barreto não quereria um tom fúnebre. Afinal, cita Sá Cunha, “morrer é só não ser visto”.