“Nunca se é excessivamente sonhadora”

Maria João Pires encerrou com chave de ouro a 20ª edição do Festival Internacional de Música de Macau. Mesmo fora dos palcos, nomeadamente no centro de estudos que fundou em Belgais, Portugal, a renomada pianista portuguesa promove a divulgação das artes com a mesma força interior que a levou a afirmar: “nunca se é excessivamente

 

Uma das facetas mais surpreendentes de Maria João Pires é o seu olhar universal, a sua capacidade para dar às coisas uma dimensão humana que foge sempre aos atavismos da vaidade e àquele estigma tão português da soberba face à glória alheia. Ela preza o sucesso dos outros e quando esse êxito se projecta na cultura – num conceito muito amplo e plural – fica feliz porque sabe que nessa afirmação criadora reside, porventura, a maior riqueza de um país chamado Portugal. Esta mulher aparentemente frágil tem uma espantosa força interior que transmite não só na consubstanciação da sua arte, onde se transfigura à medida do génio, mas também em tudo aquilo que envolve afinal a construção de um mundo mais feliz e fraterno. Essa disponibilidade para a transformação da realidade, naquilo que são os grandes desafios da humanidade, encontramo-la amiúde no seu percurso cívico, aliás inseparável da sua projecção artística.

Aquela ideia de que uma pessoa acaba por tomar a forma do que faz, que Drummond tão bem definiu, adapta-se por inteiro à sua biografia. Nos seus dias Maria João Pires não tem feito outra coisa senão espalhar luz, uma luz intensa nascida em Mozart, Beethoven, Shcubert ou Chopin, e com tantos outros, como se quisesse dizer-nos que a vida é feita da matéria dos sonhos e que aí reside a hipótese maior de felicidade. Não esqueço o que um dia me disse, no cenário mágico de Belgais. “A arte é a base da vida e de toda a aprendizagem”.

Era a síntese perfeita de um projecto transformador da mentalidade. E o poeta Eugénio de Andrade, que gostava muito dela e apreciava o seu gosto pela ousadia ou pelo risco, nos confrontos que fazia à sociedade, escreveu um poema (É assim, a música) que poderia ser o rosto de Maria João Pires.

 

A música é assim: pergunta,

Insiste na demorada interrogação

— sobre o amor?, o mundo?, a vida?

Não sabemos, e nunca

nunca o saberemos.

Como se nada dissesse vai

afinal dizendo tudo.

Assim: fluindo, ardendo até ser.

Fulguração – por fim

o branco silêncio do deserto.

Antes porém, como sílaba trémula,

volta a romper, ferir,

acariciar a mais longínqua das estrelas.

 

Assim é quando, na espessura de um silêncio que nos transporta para uma viagem sideral, é de um sonho que estamos a falar, a ouvimos tocar, ela e o piano, subitamente numa solidão total, com a caligrafia das mãos em movimentos mágicos, aqui também são as mãos “os mais belos sinais da terra”, eis Maria João ardendo na combustão da arte intemporal dos Mestres compositores, numa dádiva que Mozart e os seus pares haveriam de gostar de ouvir.

 

O sonho de Belgais

 

Belgais está agora em obras. Mas ainda se respira o encantamento da utopia que Maria João Pires ali materializou e cujas sementes são visíveis no Coro Infantil, a sinalizar que o projecto continua a ter futuro. Belgais é um lugar tranquilo, uma “ilha” do espírito no meio da selva de um materialismo que teima em reduzir tudo a um mercantilismo que subverte todos os valores. Quem teve a sorte de ir por lá e contactar aquele universo criador, não mais esqueceu decerto esses instantes únicos. Sobe-se ao lugar por caminhos do mundo rural, paisagens de árvores e campos que agora, no Outono, adquirem um cromatismo que é o melhor pastoreio para o olhar. Quantas vezes, se ouviram concertos de Maria João Pires e de outros intérpretes de classe mundial, os sons a povoarem o tempo, que ali parecia parar por momentos!

Belgais foi sobretudo um desafio às alternativas possíveis de outro viver, uma aposta na alegria dos mais jovens, uma tentativa de romper o cerco da rotina pedagógica, um incentivo à esperança e ao dia claro. Belgais foi uma comunidade cultural, um traço-de-união do pensamento, uma mesa partilhada com os outros.

Recordo o que ela me disse quando Belgais era o centro do mundo. “Belgais é um sonho de trinta anos. Eu andava à procura de um terreno que fosse isolado, tivesse um rio, uma paisagem natural bonita, que tivesse bastante área. Um dia, um amigo telefonou-me a dizer: “Encontrei um terreno com uma ruína muito bonita, umas colunas, que talvez possa ser um sítio para fazer concertos”. Eu vim cá, gostei e comprei logo”.

Depois “para construir este projecto tive que andar sempre em viagem, para ganhar dinheiro, dar concertos”. O Centro de Belgais tornou-se referência, frequentado por gente de todo o mundo. Tanto poderíamos encontrar lá o poeta Vasco Graça Moura como o cientista António Damásio. Maria João Pires explicava. “Não é uma questão de protagonismo, para se dizer que é uma coisa internacional. É uma tentativa de dar um passo numa mudança para uma nova Era… Não imagina o que é ver uma equipa inteira e um monte de gente que entra aqui, e, ao fim de uns dias, está transformada. Não sou eu que os transformo. É todo um contexto de aceitação de pessoas, como elas são, da sua personalidade”.

Num país de frases feitas e de imobilismo, o projecto de Belgais foi sempre uma coisa incómoda, à revelia dos poderes, que ela não deixava controlar, nem domesticar. Vida difícil, que a pianista não iludia. “Acho que nunca nada está assegurado, sabe?”, dizia-me ela. “Trabalhamos na chamada corda bamba!” A artista nunca se confinou ao território do fatalismo. “Gosto de ter os pés bem assentes na terra e não ser demasiado sonhadora, embora ache que nunca se é demasiado sonhadora. É acreditando nos sonhos que se faz com que as coisas se concretizem. Nesse sentido, nunca se é excessivamente sonhador”.

Perguntei-lhe se Belgais não seria mais fácil num país estrangeiro. “Sim, claro que era”, respondeu-me. “Isso é óbvio. Portugal é um país muito lento, muito difícil e complicado, que cultiva muito a mediocridade, as coisas que já estão feitas…” E logo o seu pensamento se encadeia nas contingências sociais. “As pessoas não tiveram as oportunidades, as pessoas não têm culpa de serem más, de serem mesquinhas. Estão a actuar como tal, mas, às vezes, essas pessoas com uma mudança na vida delas, com uma perspectiva nova, podem mudar. Porque a vontade de fazer mal, a vontade de estar a atrasar a vida dos outros, em vez de estar a ajudar, acho que é uma frustração terrível para toda a gente e é um sofrimento. Se as pessoas não estão felizes é característica de um país que está com um atraso, com problemas de andamento, com fragilidades”. A pianista não tem dúvidas quanto ao receio de inovar. “Em Portugal, há muito o medo de fazer aquilo que ainda não foi provado, há muito receio do que é novo. E não há campo, nem espaço, para se fazer algo de novo, para se arriscar. O que é estranho num país de navegadores…”

O peso do conformismo é um estigma de longa persistência. “Se formos a analisar a sociedade, vemos pessoas excepcionalmente activas, cheias de forças e de vontade, e , de repente, encontram-se com poder – poder financeiro, poder político – e todas as qualidades dessas pessoas desaparecem. Dá ideia que foram absorvidas pelo próprio poder. É estranho, não é? Eu acho que é um bocado o afecto que desaparece”.

Belgais é hoje uma memória que dói. O cerco que lhe fizeram, as promessas mal cumpridas, as indiferenças, os silêncios, feriram a utopia. A pianista cansou-se, a sua saúde ressentiu-se. As capitais do mundo continuam a solicitar Maria João Pires e a sua arte. A Espanha quer acolher o seu projecto, o Brasil recebe-a de braços abertos. Maria João Pires está doente de Portugal, do “país relativo”, que Alexandre O’Neill tão bem caracterizou com a sua ironia poética.

Belgais ainda respira. Talvez um dia destes possamos voltar a ver Maria João envolvida no quotidiano de Belgais e a oferecer-nos grandes concertos naquele espaço mágico, como se a nossa companheira música fosse parte inteira da jornada. Eu acredito que sim, porque na navegação do seu olhar continuam as mesmas águas de sonho e de esperança. Quando, em Julho passado, o Centro de Estudos Ibéricos a distinguiu com o Prémio Eduardo Lourenço, o escritor e ensaísta definiu-a como só ele sabe fazer. “Maria João Pires pertence a essas raras pessoas que, quando tocam, estão como que possuídas por qualquer coisa que as ultrapassa, que as domina, que nos domina a nós, pobres mortais que a ouvimos”. As suas mãos, disse ele, movem o mundo.

 

“A arte não tem fronteiras”

 

Quem, alguma vez, teve a sorte de ouvir de perto um concerto de Maria João Pires não pode deixar de ser tocado pela forma como a pianista se apropria da música para lhe dar uma fulguração íntima e pessoal que é marca genética da sua aventura criadora. Os grandes intérpretes como ela têm esse dom que os deuses conferem também aos poetas para semear luz e alegria. Maria João Pires (que se não fosse pianista gostava de ser escritora, confessou-me um dia) é uma artista à escala planetária. Os grandes palcos do mundo assistiram ao deslumbramento da sua arte. Na Europa, como na Ásia ou nas Américas, tem levado longe o nome de Portugal. Ela, para quem “a arte não tem fronteiras”, trouxe agora a Macau o sortilégio da sua música, a invenção do dia claro. A arte sempre como parte inteira da vida.

F.P.N.

 

“Sinto-me em Portugal como um turista”

 

O nosso ministro!” Com um sorriso nos lábios, solta este comentário quando lhe entrego a edição de Dezembro de 2006 da revista MACAU, que tem na capa o músico e ministro da Cultura, Gilberto Gil. A residir no Brasil, depois de ter decidido deixar Portugal, Maria João Pires reconhece que Gilberto Gil pode ajudar a desenvolver o projecto vocacionado para a apresentação de concertos de música clássica, workshops, residências e formação de crianças das escolas de Salvador, no estado da Bahia.

Do outro lado do Atlântico, a pianista, que acaba de fazer uma digressão pelo Oriente, com concertos em Macau, Tóquio e Hong Kong, espera respirar e viver uma nova etapa da sua vida, já que em Portugal “estava a ser vítima de uma verdadeira tortura”.

O povo baiano “é muito solidário, gosta de trabalhar e ajudar as crianças, que são muito protegidas”, acrescenta Maria João Pires, que pretende agora concretizar no Brasil o ideal de Belgais. “É um projecto diferente, mas o essencial de Belgais está lá”, remata.

A conversa com a MACAU tinha que ser rápida, uma vez que evidenciava algum cansaço, pois tinha passado o dia a ensaiar com a Orquestra de Macau, que classificaria de excelente, e a falar com jornalistas. Além disso, o efeito do jet-lag ainda se fazia sentir.

No quarto do hotel, perto do Centro Cultural de Macau, onde no dia seguinte encerraria com chave do ouro a edição 2007 do Festival Internacional de Música de Macau, admite que se sente em Portugal “como uma turista, uma pessoa que vem de fora. Não tenho problema nenhum com o País. Gosto de dar concertos em Portugal, gosto de muitos portugueses e do público português”.

Maria João Pires reconhece que está desiludida com Portugal. “A desilusão vem da ilusão e a ter tido ilusão a culpa é minha. Não estou a culpar ninguém. Fiz uma má escolha numa época em que não soube tomar a decisão certa. Podia ter continuado a viver em Portugal se tivesse resolvido fazer o projecto noutro local. Tinha sido a solução mais correcta, portanto, paguei as consequências.”

 

“Não me afastei, fui afastada”

 

Em Belgais, começou a concretizar um projecto singular, que animou um distrito do interior (Castelo Branco) sedento de iniciativas culturais. “Belgais funciona e funcionou, mas sendo um projecto experimental tinha forçosamente que se desenvolver, estar constantemente em movimento e em evolução. Essa evolução não se deu e o projecto ficou estático.”

Não quer alongar-se nas explicações, mas sente-se que está magoada com as autoridades portuguesas, que não souberam apoiar um trabalho de 20 anos. “Não estou ainda preparada para falar no que sucedeu e não sei se algum dia falarei sobre isso. Talvez sim, talvez não!”, disse, frisando que houve problemas graves e outros que são típicos das autoridades em Portugal. “A forma como Portugal se comporta com as pessoas, a atitude com a educação e a infância, o apoio às crianças, às instituições que acolhem crianças. Tudo isto teve um peso muito grande na decisão de me afastar.” Ou por outras palavras, “não me afastei, fui afastada. Como tudo se passou? É tão subtil que, talvez, se possa pensar que foi o contrário.”

O Prémio Eduardo Lourenço reconhece que se trata de uma história muito recente, “tenho que tomar a distância dela, tenho que digerir um bocado, reflectir. O tempo dirá”.

Quando lhe pergunto que país (Portugal) é este que deixa fugir dois dos seus maiores vultos da cultura (José Saramago e ela própria), comenta que “há outros, certamente, que também deixaram Portugal. São muitos mais que dois, cientistas, etc. Tanta gente. Sinceramente, não sei o que se passa”.

Recorde-se que quando anunciou a sua decisão, Maria João Pires foi clara. “Vim para a Bahia para me salvar um pouco do malefícios que sofri”.

Belgais (ver peça principal) não deixa, contudo, de lhe ocupar algum tempo. “O Coro infantil continua a trabalhar e depois desta digressão vou até lá, já que a escola básica na Mata, uma aldeia vizinha de Belgais, continua a funcionar.”

 

Introduzir as artes na vida das pessoas

 

A sua dimensão cultural e humana vai para além dos concertos e dos discos. A pianista defende que as artes devem ser introduzidas no quotidiano das pessoas, nomeadamente das crianças e das escolas. “Mais importante do que salvar a música clássica seria introduzir as artes na vida das pessoas e, sobretudo, das crianças. Introduzir a imaginação, a capacidade artística, a capacidade criativa nas escolas para ajudar as crianças a ter uma identidade, a serem elas próprias e não aquilo que os governos e as autoridades querem que eles sejam. Salvar a música clássica não é uma ideia tão importante como muitos podem pensar.”

Apesar de ter uma visão pessimista do Mundo e do ser humano, vai continuar a dar concertos e prepara-se para gravar um disco no próximo ano com sonatas de Chopin. “Ser pessimista não me impede de trabalhar. No auge do pessimismo a melhor arma de defesa e de ajudar os outros é trabalhar e acreditar nas coisas que podemos fazer.”

Macau está, no entanto, no seu coração. O pai, João Baptista Barbosa Pires, que não chegou a conhecer, veio para Macau em 1906-1907 e por cá ficou até aos finais da década de 20 do século passado. “O meu pai, que nasceu em 1898, esteve em Macau como missionário. Quando aqui estive há 25 anos tentei encontrar alguém que o tenha conhecido, mas não foi possível”, recorda. Por essa razão e pelos amigos que por cá tem, gosta de tocar em Macau.

Se há 25 anos, na biblioteca Sir Robert Ho Tung, deleitou os que a ouviram tocar, no passado dia 31 de Outubro deliciou as centenas que encheram o Grande Auditório do Centro Cultural de Macau.

“Muito obrigado a essa dama do piano português por ter vindo a Macau e nos ter proporcionado uma noite tão maravilhosa”. A afirmação, em jeito de comentário, é do maestro Veiga Jardim. “Técnica brilhante, cristalina, judicioso uso do pedal esquerdo, criando diversas cores e tonalidades diferentes. Extraordinária pianista. É um privilégio vê-la aqui em Macau. Os que encheram o Centro Cultural assistiram a uma manifestação de amor à arte e à música, interpretada por um representante ímpar e singular da música portuguesa”, acrescentou o director da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau.