A pintura que “espia” Macau

Tem a alma de agente secreto estampada nas telas pelas intricadas narrativas e mensagens codificadas. Chama-se Konstantin Bessmertny, nasceu na Rússia e vive há mais de uma década em Macau

 

Na distante Sibéria Oriental o frio do Inverno é glacial. No Verão o mercúrio do termómetro pode disparar tão alto como na Mongólia. Foi nesse clima que nasceu, no início dos anos 60, o pintor russo Konstantin Bessmertny. Numa daquelas aldeias “onde todos se conhecem”, na distante Blagoveschensk, viveu até uma viagem de trabalho o ter prendido a Macau. Há 13 anos que fez desta a sua nova morada. Sente-se muito português e a prová-lo está o passaporte. “Portugal é como uma segunda casa”, diz. Não tenciona cortar esse cordão umbilical, até porque “o meu filho é mais português do que russo”.

Tão misterioso como os seus quadros, Konstantin Bessmertny despertou muita curiosidade à chegada a Macau. Ainda hoje corre o boato de que era espião e que teria encontrado refúgio na região. “Sou um KGB, mas que KGB?”. Não leva a mal a onda de suspeição pois mede bem a força do imaginário criado em torno da Guerra Fria. Para quem ainda duvida, o pintor desmistifica: “Foi uma exposição que me trouxe a Macau”.

Veio por pouco tempo: apenas um ano. À data, tinha a missão de participar na organização de uma mostra no Leal Senado, a “Exposição Colectiva de Arte Contemporânea Russa”. Coordenou a exibição e convidaram-no para ficar mais um ano. A decisão foi do tamanho do desafio. “Tinha terminado os estudos na universidade, tinha outras opções, não digo que ficar em Macau fosse a melhor, mas…”

As oportunidades foram surgindo, uma atrás da outra. Bessmertny expôs no conceituado Fringe Club, em Hong Kong, e pouco tempo depois a família veio ao seu encontro. Nem assim deu por definitiva esta morada. Só há dois anos oficializou o casamento com Macau. Rendeu-se às evidências: foi forçado a abandonar o estúdio e não esteve com meias medidas. “Comprei casa!”, lembra.

Os portugueses foram os amigos que o pintor fez em Macau. “Ninguém falava outra língua que não o chinês ou o português e tive de aprender”. Não regressa à Rússia por estar exilado, como há quem pense, mas por não encontrar mais os cantos à casa. “De cada vez que lá vou sinto que estou num país diferente, onde se fala a minha língua. Mudou tudo. Os amigos do tempo da escola são hoje capitalistas e têm empresas e casas com piscina. Por isso, já não olho para aquilo da mesma forma”. Macau acabou por ficar para sempre no remetente das suas cartas. Porque “gosto de estar nos sítios onde acontecem coisas interessantes, onde se dão grandes mudanças”. Quando viveu na Rússia, passou pelo período do final dos anos 70 e princípios de 80. “Foi muito interessante”. Em Macau, “vivi as transformações na China e o tempo da transferência de poderes e agora o crescimento brutal da região.” Só não expõe individualmente na cidade adoptiva há muito tempo “porque as mostras deviam ser momentos de festa. Não sou apologista de listas de preços. As pessoas que vão às galerias não têm de comprar”. Embora já tenha exibido em Xangai, lamenta a dificuldade em entrar no mercado chinês.

 

Um passado de perseguição

 

Filho de uma professora de História e de um engenheiro, Konstantin cresceu rodeado de livros no seio de uma família muito marcada pelo passado de perseguição. O talento para desenhar cedo se manifestou, a par do prazer de contar histórias. Ainda hoje, “desenho em toda a parte e gosto de construir enredos. Os livros da escola estavam todos rabiscados, mas não era mau estudante”. Foi logo carimbado de “O Artista”. A alcunha era uma espécie de talismã. “Nunca era confundido com os betinhos”. A arte entrou na sua vida logo como um destino inevitável. “Foi mais a profissão que me escolheu”.

Havia n’ “O Artista” uma espécie de obrigação para com a sociedade que via tanta promessa na sua arte. O seu nome cedo derramou tinta nos jornais. Os amigos, os professores gabavam-lhe a vocação para as artes. Aos 12 anos, inaugurava a primeira exposição individual na mãe Rússia, “uma espécie de introdução à vida”, como apelidou esse momento. Ganhou o primeiro prémio pouco depois, ao que se seguiu outro e outro, “uma medalha e outra”. A mãe guarda cada registo dessa juventude a coleccionar sucessos no mundo da arte. Konstantin louva no regime socialista as competições de arte para jovens. “Em que outro sítio poderia um pequeno rapaz como eu vencer tantos prémios, ter o privilégio de viajar em primeira classe, de ir até ao Mar Negro, o que era para mim o mesmo que ir a Nova Iorque?”

Mas a vida também o acometeu de algumas desilusões. O primeiro grande desapontamento marcou-lhe a adolescência. Tinha apenas 16 anos quando viu negada a entrada numa das melhores universidades de Belas-Artes do país, em Moscovo. “Foi injusto”, lamenta, sublinhando que quase arrancou a pintura da sua sina. “O sistema era um pouco corrupto por existirem tão poucas universidades. Os filhos de artistas, gente famosa e poderosa tinham prioridade. Tive de ir estudar para outro sítio na Sibéria. Foi nessa época que comecei a pensar que os contactos eram muito importantes. Interroguei-me sobre se conhecia as pessoas certas, se vivia no sítio correcto para ter sucesso nesta profissão”.

Viver na Rússia não parecia ser fácil para o jovem artista Bessmertny, mas mais sofreram os seus familiares. “A minha mãe não teve sucesso na carreira, foi sempre excluída, porque o pai dela era inimigo da Revolução. O meu avô materno desapareceu aos 32 anos e disseram à minha mãe que ele tinha sido preso. O mesmo sucedeu ao pai do meu pai. Éramos uma espécie de dissidentes”.

E viaja ainda ao passado mais distante da família, que há quatro gerações vive na Sibéria. “Foram para lá levados, no tempo do Czar Nicolau II, por a fome ter atingido a Rússia Central. Tinham permissão para ocupar a terra de que necessitassem com vista a iniciar nova vida”. Uma das pessoas que mais o influenciou foi a avó. “Era extremamente religiosa, cristã ortodoxa”. Ainda hoje, tem em casa a Bíblia da família que a avó lhe deu. “Tem passado de geração em geração”. Porém, Konstantin não é uma pessoa religiosa.

Com a família, Bessmertny cedo aprendeu as regras da “neutralidade” e a manter distância dos grupos. Nem os movimentos de arte o convencem. Naquele tempo, “quem não fosse comunista não podia demonstrar que era dissidente ou então ia parar à cadeia ou a um hospital psiquiátrico”. Mas também “não julgo que não participar seja a solução para sobreviver. Aprendi a manter a neutralidade com os meus antepassados”. Para tal, explica, “tem de se exercitar uma linguagem secreta para falar com as pessoas que pensem da mesma forma que nós, como no livro de Umberto Eco ‘Em Nome da Rosa’”.

Durante o regime de Brezhnev, num jornal comunista de um judeu dissidente desenvolveu essa “linguagem”. “Ainda era estudante, mas já trabalhava como ilustrador estagiário”. Nas entrelinhas dos textos, nos títulos que comunicavam entre si ou mesmo no arranjo gráfico, Bessmertny descodificava novas leituras. “Aprendi a descobrir as histórias, era inacreditável! Ainda hoje procuro essas mensagens nos jornais, mas já não é tão comum porque nem todas as publicações funcionam da mesma maneira.”

Assim se abria uma porta que marcaria não só a forma de estar na vida de Konstantin, mas também todo o percurso como artista. À sua arte afluíram assim muitos enigmas, fruto de uma vontade de expressar a verdade não instituída. É em narrativas de palavras e imagens cruzadas, de papéis trocados, entre a magia e o real, que se tecem os enredos dos quadros de Konstantin, pejados que estão de mensagens. «Se alguém as consegue descobrir ganha o meu respeito”.

 

Com os pincéis, cruza as técnicas ocidental e oriental. Das telas para o mundo envia as mensagens pintadas em códigos secretos que cruzam várias línguas e pensamentos. O pintor russo Konstantin Bessmertny desvenda em sórdidas narrativas, nos sofisticados enredos, a escala dos seus quadros. Afinal, “foram 17 anos a estudar com grandes mestres e segundo a velha escola deste métier. Não se pode ter esta profissão sem a devida aprendizagem”.

O processo criativo de Konstantin é demorado. Primeiro, “crio a narrativa, muitas vezes chego a escrever a história, e depois pinto”. Há quadros que levam muito tempo a criar, enquanto outros são mais rápidos. “Mas nunca termino uma obra num muito curto espaço de tempo, nem acredito na arte assim.” Ora pinta à luz do dia, quando a cor é importante, como em “Painting for People with IQ Way above Normal I and II”, ora à noite como foi para “Accusation”.

Gosta de cruzar ficção e realidade. Memória e futuro. Constrói a pulso uma arte intemporal carregada de imaginários que cozinha no grande caldeirão cultural de Macau, onde reside há 13 anos. Konstantin é como um agente secreto da pintura. “A tela é como a carne viva. Um rosto do mundo” .

Os seus quadros, que têm evoluído na composição e na cor, cada vez mais complexa e sofisticada, acabam como mapas do tesouro da verdade, enigmas de forte estímulo intelectual, palavras cruzadas de histórias por findar. São acima de tudo verdadeiros desafios à mente humana, concordam muitos críticos. Seja na sátira ou na paródia, este artista é para muitos um verdadeiro cronista de Macau.

 

Smirnoff, um artista refugiado

 

Em comum, têm a Rússia nas raízes e Macau como residência. Em tempos diferentes, retrataram a cidade que escolheram para viver. Actualmente, a residir em Macau, Konstantin Bessmertny e George Smirnoff, que viveu na região entre 1946 e 47, pouco mais têm em comum. Para António Conceição Júnior, que tem estudado a vida e a obra de Smirnoff, compará-los “seria pura especulação pela disparidade geracional e, consequentemente, estética que distingue os dois artistas”. Admite que “é a temática Macau” que os une, ainda que existam “diferenças abissais, porquanto se George Smirnoff retratou a cidade enquanto espaço urbano” de forma quase cândida, Bessmertny olha, retrata, num tom crítico e satírico situações, circunstâncias e eventos”, situando-se num “outro plano da narrativa e da crónica de Macau”.

Por muito que o tempo e o olhar sobre a cidade os distancie, partilham a mesma paixão por esta moldura urbana. Smirnoff viveu no entanto numa Macau bem diferente, fustigada pela guerra que grassava além-fronteiras, já Konstantin habita uma cidade em rápida transformação. Enquanto o primeiro traduziu na tela a tranquilidade, o segundo acende a crítica numa narrativa codificada.

Para António Conceição Júnior, as obras de Smirnoff são “importantes documentos que se inserem na continuidade dos cronistas gráficos de Macau que o antecederam. O seu legado insere-se assim na linhagem de registos deixados em diferentes momentos da História de Macau”.

Smirnoff foi o único artista estrangeiro a gozar do estatuto de refugiado, garante António Conceição Júnior, incumbido que foi de comissariar a exposição comemorativa do Centenário do Nascimento de George Smirnoff no Museu de Arte de Macau, em 2003.

Aquando da Guerra do Pacífico e da invasão japonesa, Macau deu guarida a muitos refugiados. Eram muitas as privações e dificuldades que acometiam a cidade, repartida entre o fausto das classes mais abastadas e a miséria dos pobres. Recorda Conceição Júnior que nesse tempo Smirnoff “estava imerso num mundo de altruísmo, que fez com que as suas pinturas se tornassem reflexos da realidade que ia para além do tempo e do espaço. Macau, por razões históricas, manteve a sua neutralidade, como se estivesse separada das chamas da guerra”.

Como muitos refugiados, também Smirnoff encontrou no Hotel Bela Vista alimento para o desejo de permanecer em Macau até se estabelecer na Rua das Seis Casas. Nessa altura já era um homem com uma grande experiência de vida. Tinha fugido da Rússia por causa da Revolução Bolchevique e até tinha caído nas mãos dos japoneses que o prenderam em Hong Kong. Macau foi assim a esperança que o alimentou durante 1945, o ano em que teve de se dedicar à pintura para sobreviver na região.

Educado em Harbin, onde lhe foi reconhecido o saber em Arquitectura, Smirnoff era exímio no desenho. Por ter uma personalidade afável, multifacetada e dominar bem a língua inglesa, o pintor russo fez amizade com os macaenses. Assinou a cenografia das peças que animavam o Teatro Dom Pedro V e ilustrações no jornal “O Clarim”, dando ainda aulas de desenho e de aguarela. Tudo por gosto, traduzindo-se esta forma de sobreviver numa imensa criatividade, acredita Conceição Júnior.

Seriam as suas aguarelas que marcariam a História de Macau e foi Pedro Lobo, um grande patrono das artes e o director do Círculo de Cultura Musical, quem mais investiu no seu talento, encomendando-lhe aguarelas que retratassem a região. As mais de 60 que produziu à época integram hoje em dia a colecção do Museu de Arte de Macau.

As igrejas e residências de Macau habitam muitas das suas telas, onde pouco se revela a silhueta humana. “Retratista dos ambientes urbano-arquitectónicos de uma Macau já desaparecida”, Smirnoff teve porém um fim triste: “Regressado a Hong Kong no fim da guerra e cansado de quase uma vida inteira de refugiado, encontraria na janela de um andar alto a solução para o seu sofrimento e desespero”.