O negociador

Sete anos e meio no Oriente não o transformaram num sinólogo, até porque não fala a língua. Santana Carlos, que acaba de trocar Pequim por Londres, não esconde que o trabalho em Macau e na China lhe permitiu verificar a competência, o elevado profissionalismo e o pragmatismo da diplomacia chinesa

Em Londres, onde hoje brilham muitos portugueses, vai terminar a carreira diplomática. António Santana Carlos, de 61 anos, deixou recentemente Pequim, colocando assim um ponto final a sete anos e meio no Oriente.

O homem que conduziu por parte de Portugal as negociações com a China na fase final da transição de Macau sente uma grande paixão por este lado do Mundo.

Não é um sinólogo, pois não fala chinês. Não aceita, aliás, o estatuto do diplomata português que melhor conhece a China, «no Ministério dos Negócios Estrangeiros há vários colegas, como o embaixador Pedro Catarino, que também trabalhou em Macau e em Pequim, que têm um bom conhecimento da China».

O último líder da parte portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto (GLC) recorda, a propósito, que na RAEM está colocado o seu velho amigo Pedro Moitinho de Almeida e, em Xangai, João Maria Cabral, que trabalharam consigo naquele órgão de consulta entre Portugal e a China para a transição de Macau.

Filho de um médico com larga experiência na cooperação internacional sentiu desde muito novo uma enorme atracção pelo estrangeiro. «O meu pai trabalhou durante quatro anos (1955-1959) nos Estados Unidos, tendo sido o primeiro médico português a especializar-se em medicina física e de reabilitação. Além disso, todos os anos participava em muitas conferências e seminários no exterior, o que acabou por influenciar o meu interesse pelo que se passava lá fora», contou-nos poucos dias antes de deixar Pequim.

Natural de Lisboa, onde viveu quase sempre, à excepção de um ano, em que frequentou o Liceu de Évora, onde concluiu o antigo 7o ano, teve uma infância e uma juventude felizes, sem problemas. Oriundo de uma família católica, «acredito em Deus, mas não sou muito praticante», estudou sempre em escolas ligadas à Igreja.

Em 1970 terminou a licenciatura em Ciências Sociais e Políticas e, em 1971, ingressou no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). «Sempre fui contra a guerra colonial e na altura havia a hipótese de regressar ao MNE após o período de recruta e de especialidade (seis-sete meses). É que caso a classificação nesse período fosse boa a hipótese de mobilização era remota». Foi o que sucedeu com Santana Carlos, que dos tempos de estudante na Universidade Técnica de Lisboa recorda com saudade os ensinamentos de professores como Adriano Moreira ou Narana Coissoró. «Estamos em campos opostos em termos ideológicos, mas continuo a ter uma grande consideração por esses dois professores, que me marcaram muito, dada a sua alta craveira intelectual e enorme capacidade de serem precisos e claros na maneira de explicar as matérias».

Nos anos de 1974-1975, o jovem diplomata toma contacto com a realidade japonesa. Colocado como 2º secretário da embaixada portuguesa em Tóquio, visita, em Janeiro de 1975, a China, Macau e Hong Kong. Vinte anos mais tarde regressa a Pequim para negociar a presença chinesa na EXPO 98, projecto onde trabalhou, nomeadamente na promoção externa da Exposição Universal.

 

Quase todos os meses em Macau

 

Em Junho de 1996, por escolha de Jaime Gama, então ministro português dos Negócios Estrangeiros, substitui no GLC o embaixador Jorge Ritto. Nunca fixou residência em Macau, mas em 42 meses deslocou-se 39 vezes ao território. Ficava por períodos de dez dias, durante os quais mantinha reuniões com o governador Rocha Vieira e a parte chinesa do GLC (ver caixa).

De regresso a Lisboa, depois da transferência de Macau, ocupa-se do «dossier» de Timor-Leste. Mais tarde, é promovido a director-geral da Política Externa, um dos mais importantes cargos do MNE.

Quase três anos depois de ter deixado os assuntos de Macau é colocado em Pequim. Não era o posto diplomático que então desejava, já que estava mais interessado em manter-se na Europa, por causa dos estudos do seu único filho. Na capital chinesa, tudo decorreu com grande normalidade e em breve vai ter em casa um jovem licenciado em Direito. «Um futuro diplomata? Não sei! Penso que não».

Nos quase 36 anos de carreira que já cumpriu, passou também pela embaixada em Luanda (86-90) e por Genebra (82-86), além de ter exercido vários cargos na sede do MNE, em Lisboa.

Benfiquista, desde a inauguração do velho Estádio da Luz, a 1 de Dezembro de 1954, deixou de ser sócio, dada a ausência prolongada de Lisboa.

Em Londres, onde assumiu recentemente funções, vai ter a possibilidade de acompanhar a carreira dos craques portugueses que actuam no futebol inglês. «A comunidade aumentou significativamente nos últimos anos. Hoje vivem mais de 400 mil compatriotas no Reino Unido», nota, mostrando-se muito satisfeito por terminar a carreira num dos postos mais destacados da diplomacia portuguesa.

Na capital britânica vai continuar a jogar golfe, «em Pequim só podia fazê-lo durante quatro meses, já que as condições climatéricas não permitem que no resto do ano se possa dar umas tacadas», a deliciar-se com a excelência das obras de Beethoven e Bach, os seus compositores favoritos, e a dar uns passeios pelas margens do Tamisa. A vela, de que é um apaixonado (entre 79 e 83 possuiu um barco) fica para mais tarde.

Em terras de Sua Majestade, Santana Carlos espera receber muitos dos amigos que deixa do outro lado do Mundo e continuar «a desfrutar, com moderação, dos prazeres da vida, das coisas boas da vida»…

 

“Transição foi uma negociação única”

 

Santana Carlos fala dos principais «dossiers» que negociou no Grupo de Ligação Conjunto (GLC). Um trabalho muito intenso que contribuiu para a transição suave de Macau.

 

– Como classifica o trabalho do GLC?

– Foi um período muito interessante e uma boa experiência profissional. Durante três anos e meio estive envolvido diariamente na fase final da transição de Macau. Vim a Macau 39 vezes, para contactos aos mais diversos níveis. Aproveitava essas visitas para reuniões e procurar fazer avançar os «dossiers».

Tratou-de de uma negociação única. Só os britânicos tiveram uma experiência idêntica. Durante vários anos, interlocutores portugueses e chineses discutiram o futuro de Macau, já que a Declaração Conjunta é um documento de carácter genérico.

Conheci bem a diplomacia chinesa, que é muito competente. Tem muita gente e os seus diplomatas fazem um estudo muito aprofundado dos «dossiers». Há o Governo, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Conselho de Estado, as estruturas do partido, que se pronunciam sobre os assuntos mais importantes.

A Administração de Macau teve sempre competência técnica na elaboração dos «dossiers». Senti sempre apoio do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Administração de Macau.

– A transição foi um sucesso…

– As negociações decorreram bem e foram criadas condições para que a Região Administrativa Especial de Macau funcione bem, como tem sucedido.

Dos trabalhos destacaria, entre outros, o “dossier” da Fundação Oriente que, no período de 96-97, foi a primeira grande questão que tivemos de resolver. Era necessário encontrar uma solução o mais rapidamente possível, pois existia uma enorme pressão sobre esse assunto.

– A regulamentação das línguas foi outra das matérias «quentes» da fase final da transição.

– Na Declaração Conjunta não se fala no português como língua oficial. A Lei Básica é que diz que o português será também língua oficial. Foi, talvez, o «dossier» que deu mais trabalho. A questão só foi resolvida na parte final da transição, quando em Outubro de 1999 o presidente Jiang Zemin visitou Portugal.

– Que outras matérias destaca da fase final da transição?

– Os resultados obtidos no que diz respeito à localização das leis e de quadros e a participação de Macau em organizações internacionais, além dos vários acordos de tráfego aéreo, que permitiram dinamizar o Aeroporto Internacional.

Realce ainda para algumas revisões de contratos importantes, como o da CEM e da TDM e o acordo de televisão por cabo.

Antes da minha chegada ao GLC, gostaria de destacar o acordo que possibilitou a construção do Aeroporto Internacional, que foi, essencial, para a autonomia de Macau. E o acordo da emissão da moeda, que consagra que o Banco Nacional Ultramarino vai, em parceria com o Banco da China, emitir a pataca até 2010.

Gostaria de sublinhar  ainda o acordo alcançado quanto à entrada (8 horas da manhã de 20 de Dezembro) das tropas chinesas em Macau. Foi uma situação diferente à encontrada para Hong Kong.

No Grupo de Ligação Conjunto trabalhou-se bastante e conseguiram-se resultados concretos e significativos, que ajudaram a garantir a tranquilidade da transição.

 

“Se a China espirra o Mundo pode constipar-se”

 

O novo Macau e os desafios da China na visão do diplomata português, que conheceu duas gerações de líderes na República Popular.

 

– Sete anos depois da transição, como é que olha para Macau?

– O facto da política chinesa ter passado a permitir a deslocação de cidadãos chineses, a título individual, a Hong Kong e Macau, em Janeiro de 2005, contribuiu para o desenvolvimento do jogo. O que significa que o aumento do número de apostadores está assegurado. Macau vai ter, portanto, meios de continuar a subsistir bem.

Vê-se da parte do Governo da RAEM interesse em manter os valores de Macau. O ano passado um conjunto de monumentos, entre os quais alguns de matriz portuguesa, foram integrados na lista da UNESCO de Património da Humanidade. O que dá garantias de manutenção desse património, o que é muito importante, já que é uma imagem do território e permitir diferenciar Macau de outras cidades chinesas.

A própria paisagem humana está a alterar-se, com a entrada de muitos quadros americanos, australianos e de outras nacionalidades, já que existe hoje uma competição que não acontecia nos primeiros anos da RAEM.

Com a criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa e, também, com os Jogos da Lusofonia, houve uma valorização da componente de língua por-tu-guesa de Macau. O Governo da RAEM tem  interesse, com o apoio da China, em valoriza-la, o que nesta altura me parece necessário, dada a alteração que está a verificar-se com o reforço da comunidade anglo-saxónica.

– O Fórum é um instrumento estratégico…

– Ao valorizarem, através de Macau, as relações entre a China e os países de língua portuguesa estão a dar maior dimensão à comunidade lusófona de Macau.

– Nestes últimos quatros anos, que mudanças se verificaram no relacionamento entre Portugal e a China?

– As nossas exportações para a China quase que quadruplicaram em três anos (de 82 milhões de dólares norte-americanos em 2002 para 320 milhões o ano passado). Portugal e a China assinaram a parceria estratégica, o que só sucede com cinco países europeus. As relações na área económica vão ser dinamizadas nos próximos anos. O relacionamento político é excelente. Depois do primeiro-ministro chinês visitar Portugal, José Sócrates deslocar-se-a à  China em 2007.

Há mais empresas portuguesas a trabalhar na China e abrimos o Consulado-Geral em Xangai.

Em 2004, o delegado ICEP em Macau, além da actividade desenvolvida na RAEM e Hong Kong, passou a trabalhar o mercado de Cantão.

Não é fácil para as empresas portuguesas penetrarem na China. Temos, por exemplo, o caso do Grupo Amorim, que está a ter uma forte presença, já que dispõe de uma excelente rede de contactos.

Para muitas empresas portuguesas entrarem na China é difícil e complexo. O que é prioritário é escolher as áreas em que somos competitivos. Não vale a pena uma empresa vir às cegas para a China.

Depois é fundamental estabelecer uma rede de contactos, pois só assim será possível desenvolver a actividade na China. Muitas vezes trocam-se cartões de visita que não servem para nada. É preciso encontrar o parceiro certo.  Quando se estabelece um negócio é preciso que os termos sejam filtrados por juristas, que se faça uma análise cuidada, inclusive da tradução, para que mais tarde não haja equívocos e disparidades.

O negócio não pode ser acompanhado à distância. As empresas portuguesas têm que ter os seus representantes na China.

– E o que mudou na China?

– A China continua a crescer muito. Em 2005, ultrapassou a França e o Reino Unido, sendo já a quarta economia do Mundo, atrás dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão. Estou convencido que no prazo de 25-30 anos vai disputar o primeiro lugar com os EUA, depois de ultrapassar a Alemanha e o Japão.

A actual liderança continua a apostar na via do desenvolvimento económico, mas com mais preocupações na área social, o que na China se chama a política da sociedade harmoniosa.

A sociedade harmoniosa significa a diminuição das diferenças e dicotomias entre as áreas urbanas e rurais, a zona costeira e o interior. Se isso não se verificar podem existir algumas situações de instabilidade e os dirigentes chineses têm perfeita consciência do que se pode passar.

O primeiro-ministro, Wen Jiabao, dá uma grande atenção aos problemas sociais. A China vai continuar a funcionar com estabilidade, o que é bom para o Mundo, pois hoje em dia se a China espirra o Mundo pode constipar-se. O que significa que é melhor para todos que a situação permaneça estável.