“16 Ice House Street, Central, Club Lusitano Building, please.”Em Hong Kong, não são muitos os motoristas de táxi que dominam a língua inglesa. Normalmente pedem várias referências para confirmar o destino mas, neste caso, o endereço não deixa dúvidas: é para Central que tem de se dirigir, para o coração da cidade. Mesmo no centro da costa norte da ilha de Hong Kong, Central é, por excelência, o “distrito” dos negócios que eleva Hong Kong a uma das mais fortes praças financeiras do mundo.
A paisagem que se vislumbra da janela do táxi, uma moderna e arrojada arquitectura que forma uma inconfundível imagem de marca da cidade, atesta bem os volumes astronómicos de capitais que movimentou, e continua a movimentar. Hong Kong afirmou-se desde sempre como um importante entreposto comercial dada a sua localização estratégica, na margem Este do Delta do Rio das Pérolas, a 70 quilómetros de Macau que fica do outro lado do rio. Essa mesma mais valia foi reconhecida pelos ingleses que, depois do fim da Primeira Guerra do Ópio em 1841, aí fundaram uma colónia. Em 1997, cerca de dois anos antes do mesmo se dar com Macau, Hong Kong reverteu para a China, com o estatuto de região administrativa especial.
Hong Kong conquistou um lugar entre as grandes praças financeiras nas últimas décadas do século passado ao funcionar como mediador entre o mundo e a China, que iniciava os primeiros passos do seu processo de abertura económica. E ainda que tenha perdido algum do estatuto que granjeava entre outras praças financeiras, com a deslocalização de grandes multinacionais para o interior da China ou outros pontos da Ásia, e o primeiro lugar como principal porto de distribuição do mundo, Hong Kong retém toda a sua pujança, vendo a sua economia reconhecida internacionalmente como uma das mais livres e competitivas. Sete milhões de habitantes em cerca de mil quilómetros quadrados fazem de Hong Kong uma das cidades mais densamente povoadas do planeta mas também um dos maiores PIB per capita do mundo – 37.400 dólares norte-americanos – e o maior da Ásia.
No coração da cidade
O táxi pára mesmo em frente ao célebre edifício do Hong Kong and Shangai Banking Corporation (HSBC), a escassos metros do destino. Vale a pena mencionar o edifício não só porque foi imortalizado nas telas do grande ecrã em variadíssimas películas de Hollywood, devido à vanguarda arquitectónica que representa mas, mais particularmente, pelo significado da instituição que abriga. Assumindo-se como um dos maiores bancos da cidade e um símbolo da pujança económica da antiga colónia britânica, o HSBC deve muito do seu sucesso, e provavelmente a sua sobrevivência, aos inúmeros membros da comunidade de portugueses do Oriente que preencheram os seus quadros desde a sua fundação. “The boys from Macau”, como Hong Kong carinhosamente os apelidou, formaram um forte contingente junto da sociedade local, especialmente após a Segunda Grande Guerra. Macaenses por condição, estes filhos da miscigenação realçaram sempre as suas origens portuguesas e a sua portugalidade cultural.
Antes mesmo de se atravessar a Ice House Street, onde a alta sociedade de Hong Kong se passeia à velocidade contagiante dos negócios por entre as mais diversas lojas de grandes marcas internacionais e as luxuosas suites de escritórios, avista-se a Cruz de Cristo que identifica o mais recente edifício do Club Lusitano de Hong Kong. Trata-se do terceiro imóvel ocupado pela instituição naquele mesmo terreno desde 1920, data em que abandonou as instalações de Shelley Street para se estabelecer em Central. A 17 de Dezembro de 1965, por ocasião do centenário da fundação do clube e com o apoio financeiro da dependência do Banco Nacional Ultramarino em Macau, seria lançada a primeira pedra de um novo edifício que foi ponto de encontro da comunidade num dos seus períodos áureos. E, volvidos 35 anos, no mesmo dia e mês do ano 2000, iniciaram-se os trabalhos de construção das actuais soberbas instalações.
Uma tradição enraizada
Hong Kong herdou toda uma cultura clubista britânica, hoje parte integrante da sociedade. As opções clubísticas são inúmeras, com espaços para todos os gostos e a promoção ou defesa de todas as causas, desde a preservação do golfinho cego cor-de-rosa, que tem como habitat natural o estuário do Rio das Pérolas, aos pólos culturais, económicos e políticos. Pertencer a determinado clube é, para todos os efeitos, um símbolo de prestígio que atesta o estatuto social. Em Hong Kong, onde o negócio é rei, a membership é muito mais do que isso. É uma porta que abre novas oportunidades, novos conhecimentos, novas relações. No passado este tipo de instituições funcionou como ponto de acolhimento da comunidade expatriada de negociantes e funcionários da administração colonial. Elitistas na sua política de associados, rapidamente evoluíram para se assumirem como verdadeiros núcleos de poder em defesa de interesses comuns.
No caso do Club Lusitano os seus membros exerceram uma notável influência sobre os destinos de Hong Kong desde os tempos da fundação da cidade, em 1841. Porventura os marcos mais significativos e de maior reconhecimento junto da população local terão sido o voluntariado da comunidade luso-descendente nas forças ar-ma–das que defenderam Hong Kong da ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial e a dinamização da península de Kowloon, do outro lado do porto de Hong Kong.
Até certo ponto, essa influência continua a ser visível nos altos cargos ocupados por alguns dos membros, como juízes do Tribunal de Última Instância, advogados e empresários de reconhecido sucesso, estrelas da sociedade local e até cavaleiros da Coroa britânica, como Sir Roger Lobo, reconhecido pelo seu desempenho nos trabalhos que levaram ao retorno da soberania de Hong Kong para a China.
Porém, os números da comunidade de matriz portuguesa são cada vez mais reduzidos e a sua exposição menor. De acordo com as estimativas do Club, serão cerca de um milhar os portugueses (na sua esmagadora maioria macaenses) actualmente a residir em Hong Kong. Os sócios contam-se em largas centenas mas a maioria são “membros ausentes”, indivíduos que fazem do território o seu segundo ou terceiro lar. Os que realmente participam activamente na vida do clube são luso-descendentes, já nascidos em Hong Kong, alguns sem qualquer ligação à língua portuguesa. O núcleo duro, constituído pelo que resta de toda uma geração de macaenses que imigrou para Hong Kong depois da Guerra do Pacífico, esse sim, fala o português, ainda que com um ligeiro sotaque british.
“Hoje os tempos são outros”, afirma num inglês perfeitamente britânico Henrique Souza, secretário-geral do Lusitano, encarregue da gestão corrente da instituição. Filho de terceira geração de macaenses, Henrique Souza personifica o elemento típico da comunidade luso-descendente de Hong Kong dos dias de hoje. Curiosamente, ou não, foi convidado para o cargo aquando da sua aposentação como quadro sénior do Hong Kong and Shangai Banking Corporation.
Visita guiada
Qual “mestre de cerimónias”, o nosso anfitrião presta-se a mostrar as espaçosas instalações do clube que ocupam os três últimos pisos do edifício de 28 andares. Salão de baile, restaurante, bar, salas de bilhar, de jogos e de convívio, tudo revestido pelo luxo e o acolhedor requinte da madeira. Os restantes pisos do edifício abrigam escritórios de empresas offshore, gestão de investimentos, advogados, médicos ou terapeutas e, inclusivamente, a representação de uma companhia aérea, a South African Airways. Por estar localizada na zona nobre da cidade, esta jóia do imobiliário de Hong Kong está avaliada em cerca de 600 milhões de dólares de Hong Kong (aproximadamente 75 milhões de dólares norte-americanos). É certo que o clube contraiu empréstimos significativos para viabilizar a sua construção, mas o edifício garante à instituição a sua robustez financeira.
É no último andar, onde está localizado o Salão Nobre de Luís de Camões, que o edifício toma todo o partido da sua localização revelando, através das paredes envidraçadas, uma magnífica vista típica dos postais ilustrados de Hong Kong, tendo como pano de fundo um emaranhado de arranha-céus. De um lado perfilam-se os edifícios do Standard Chartered Bank, do Hong Kong and Shangai Banking Corporation e a torre do Banco da China, outro exemplo do arrojo arquitectónico da cidade, assinado por Ieoh Ming Pei, também responsável pela pirâmide de vidro do Museu do Louvre em Paris, e a quem foi encomendado o projecto de concepção do futuro Centro de Ciência de Macau. À frente, avista-se um vasto patamar de vegetação polvilhada por edifícios baixos, desde o Tribunal de Última Instância à Catedral de St. John, colégios e parques. Lá mais ao fundo ergue-se uma torre negra, propriedade de Li Ka Shing, o empre-sário mais rico de Hong Kong. E, pela direita, ladeada pela vegetação dos jardins Botânico e Zoológico de Hong Kong, surge uma peculiar construção de dois andares – a mansão dos antigos governadores de Hong Kong, onde aliás vários membros do Lusitano foram homenageados. No apogeu do século XIX os bailes do Club eram um acontecimento social que ninguém queria perder, e o mesmo se poderia dizer dos convívios promovidos entre as décadas de 60 e 80 do século passado, quando a influência do Lusitano se repercutia na própria administração da então colónia. Hoje, as instalações do clube continuam a ser cobiçadas mas por motivos mais pragmáticos. O Salão Nobre de Luís de Camões é especialmente do agrado de instituições comerciais para a realização das suas promoções e encontros. O American Chamber of Commerce, por exemplo, é uma presença assídua no edifício, tirando partido da sua localização, das infra-estruturas de apoio e, muito possivelmente, da paisagem para impressionar os seus convidados. “Claro que terá sempre de haver uma qualquer ligação a um sócio do clube, que requisita e se responsabiliza pelas acções dos seus convidados”, aclara Henrique Souza.
Contudo “o espaço está claramente subutilizado”, afirma o gestor. Fora eventos pontuais são meia dúzia os sócios que ali param num dia de semana. A mais recente excepção foi durante a realização do Campeonato do Mundo de Futebol, seguida muito atentamente pelos sócios até altas horas de madrugada (os jogos começaram entre as 21h00 e as 03h00, hora de Hong Kong). Retirando as inúmeras recepções aos chefes de Estado e governantes portugueses que visitaram a China nos últimos anos, o último grande evento promovido que encheu literalmente o clube foi uma recepção oferecida aos delegados ao Encontro das Comunidades Macaenses, em Novembro de 2004. O restaurante, que se pauta pela gastronomia portuguesa, ainda vai registando algum movimento durante os almoços, fruto da localização junto aos escritórios de vários membros. Mas tanto o bar como a sala de convívio não encontram par nos encontros de fim de tarde do passado, quando os sócios se reuniam ali para tomar o seu drink antes dos seus compromissos nocturnos.
As memórias e o futuro
Esses encontros são das recordações que mais emoção provocam a Arnaldo de Oliveira Sales, presidente do Club Lusitano desde 1967. O Grã-Cruz, Grande Oficial e Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique (sendo a mais alta condecoração do Estado Português) recorda-se bem dos tempos em que era também presidente do Urban Council (administração municipal) de Hong Kong. “Encontrava-me aqui todos os dias com todos os meus amigos para tomar o nosso whisky e falarmos um pouco de tudo, desde política até aos casos mais necessitados da comunidade. O clube ajudou muita gente…”, recorda aquele que foi o grande dinamizador do Lusitano nas últimas quatro décadas.
Oliveira Sales, cuja carreira pode ser descrita como uma sucessão de galardões e reconhecimentos públicos das instituições a que esteve ligado (destacam-se o Junior Chamber International de Hong Kong e Hong Kong Olimpic Commitee) recusou ser nomeado cavaleiro britânico pois isso obrigá-lo-ia a abdicar da sua nacionalidade portuguesa. O também detentor da mais alta distinção do Executivo de Hong Kong, a Grand Bauhinia Medal, atribuída em 1998 pela sua dedicação em prol do desporto amador e do movimento Olímpico, não esquece as glórias passadas do clube mas também não tem ilusões quanto ao futuro. Perspicaz investidor, resgatou o clube da quase bancarrota em que se encontrava quando assumiu a presidência para a actual situação financeira, afirma peremptoriamente que “assim não temos futuro, o clube está a desaparecer”. O envelhecimento da comunidade, o êxodo para outras paragens e o desinteresse das novas gerações, tudo são argumentos para uma tomada de posição drástica da direcção do Lusitano: “temos de abrir as portas a membros de fora da comunidade”.
“Claro que não será admitido qualquer um. Terá de ser uma pessoa idónea, de reconhecido mérito junto da comunidade e da confiança dos associados”, salvaguarda o comendador do Brasil, Espanha, Itália, Japão e Reino Unido, entre outros. Não sendo uma decisão unânime junto dos associados a proposta de abertura da membership recolhe o acordo da maioria.
Já no final do ano passado foi convocada uma assembleia-geral extraordinária para deliberar sobre a matéria. Contudo, não se reuniu o necessário quórum que permitisse alterar os estatutos do clube, que o classifica como uma instituição étnica. A alteração “é uma questão simples que pretendemos ver resolvida na Assembleia-Geral deste ano”, afirma Oliveira Sales, confiante na dinamização de mais um capítulo da história do clube. A materializar-se, a entrada de novos membros no Club Lusitano pode vir a revitalizar uma das mais idóneas instituições de matriz portuguesa do Oriente que, embora goze de uma considerável solidez financeira, carece de membros que a dinamizem.
Uma das apostas mais pragmáticas no futuro da comunidade passa pela criação de uma associação de empresários macaenses de Hong Kong que, paralelamente ao clube, apoie a aproximação económica da China aos mercados estrangeiros, mais especificamente com os países de língua portuguesa, fazendo vingar a sua densa e importante rede de contactos comerciais. A iniciativa tem a sua génese no seio das Casas de Macau espalhadas pelo mundo – o Club Lusitano é uma de 12 – e fará sentido também em Hong Kong, que tem vindo a registar um crescente volume de comércio bilateral como um dos maiores parceiros comerciais da China, por sinal falante de língua portuguesa, o Brasil.