Quando o Presidente Lula da Silva, após a sua histórica chegada ao poder convidou Gilberto Gil para ocupar o cargo de ministro da Cultura, a escolha terá surpreendido, mas era inquestionável. O prestígio do escolhido como músico, cantor, artista, intelectual, e principalmente o seu perfil como figura universal no mundo da cultura, não deixavam grande margem de controvérsia mesmo para os mais fundamentalistas opositores do Presidente.
Alguns pensaram, no entanto, que o novo ministro seria essencialmente uma figura tutelar, mais centrada num papel de influência nas políticas do que propriamente na acção, conhecida que é a falta de vocação que artistas e intelectuais geralmente demonstram para o desempenho de cargos políticos ou de gestão.
Surpresa para uns, menos surpresa para aqueles que melhor o conheciam, em poucos meses, Gilberto Gil, mudou radicalmente o paradigma da política cultural brasileira. Tomou posse em Janeiro de 2003 e logo deu início a uma reforma estrutural do Ministério da Cultura. Agilizou estruturas, descentralizou, alterou os critérios de incentivos. Tudo com o objectivo de levar a todo o país, desde o litoral desenvolvido do eixo São Paulo-Rio de Janeiro às pequenas comunidades do vasto interior brasileiro, um projecto cultural novo, capaz de transformar os cidadãos e a sociedade.
Um dos seus grandes instrumentos foi a criação dos chamados Pontos de Cultura, nem sempre bem aceites pelos privilegiados do sistema anterior, mas que foi a fórmula encontrada para “atender áreas periféricas que nunca foram atendidas”. Isto valeu-lhe críticas de figuras importantes da cultura brasileira, mesmo de alguns amigos, mas a polémica parece estar agora ultrapassada pela realidade que é o êxito desta iniciativa.
Com esses Pontos de Cultura que Gilberto Gil está a espalhar por todo o país, os meninos das favelas ou do interior mais isolado aos quais foi proporcionada uma pequena actividade cultural que os retira da rua e ajuda à sua formação, seguramente vão ser bem diferentes das gerações que os antecederam. Serão um novo rosto do Brasil a despontar.
Embora Gilberto Gil, nos anos 80, tivesse já feito uma incursão na política como vereador do ambiente da Prefeitura da Baía, onde deixou um conjunto de iniciativas inovadoras, talvez nunca tenha passado pelo seu espírito a ideia de alguma dia vir a ser ministro, mas este casamento entre cultura, arte e política, revelou-se uma união de sucesso. Saber como encarou o artista esta nova situação era uma pergunta que se impunha, mas que ele também deve ter feito a si próprio algumas vezes. Não admira que a resposta seja pragmática embora não desprovida de alguma ironia.
“Vejo isto com as mesmas reservas clássicas que Platão já tinha, mas também com muita generosidade, com muita capacidade generosa de compreender a possibilidade de uma nova relação entre o poeta e a República. Foi por isso que aceitei. É um desafio”.
Facto talvez raro, a política não anulou o artista, o poeta, o músico, o filósofo e o humanista. A arte também não anulou o político. Revelou, sim, um novo perfil de político que ninguém estava habituado a ver. Os dois mundos coexistem nele para bem de ambos. E em Julho do mesmo ano em que tomou posse, Gil tirou mesmo um mês de licença no seu ministério para fazer uma tournée pela Europa com um show dividido com Maria Bethânia.
A sua actividade como artista nunca foi interrompida. Além dos muitos espectáculos em que tem participado, ainda arranjou tempo para outras actividades como a presença em 2005 num baile de beneficência no Mónaco organizado pela princesa Carolina ou compor, em francês, o hino para o festival de Dakar “La Renaissance Africaine”.
A África e as suas culturas nativas é uma presença constante no pensamento deste baiano que as exalta, as sintetiza e lhes dá expressão na sua vastíssima e variada obra.
Reconhece, no entanto, que a visão do mundo dito civilizado, do mundo desenvolvido em relação à África ainda é “neocolonialista” e apenas para expansão de mercados, obtenção de mão-de-obra e matérias-primas baratas e criação de mercados de excedentes.
“Enquanto a situação permanecer assim – reconhece – não teremos realmente desenvolvimento global justo, harmonioso e digno, propriamente, das palavras avanço e civilização”.
Para alterar este quadro, Gilberto Gil lembra a necessidade de criar espaço para que a África seja considerada com a sua contribuição, com as heranças que vêm do passado.
“É preciso que o mundo dito civilizado e desenvolvido considere a África como um dos factores dessa própria civilização que foi obtida por elas”. E cita Caetano Veloso, quando este afirma que “a África civilizou o Brasil” acrescentando que se a África não tivesse vindo para o Brasil este não teria o processo civilizacional que tem hoje.
“É fundamental que o mundo desenvolvido considere isso e abra efectivamente o espaço para essa diversidade de modos de ser, de modos de conceber a vida, de conceber a
Quando o Presidente Lula da Silva, após a sua histórica chegada ao poder convidou Gilberto Gil para ocupar o cargo de ministro da Cultura, a escolha terá surpreendido, mas era inquestionável. O prestígio do escolhido como músico, cantor, artista, intelectual, e principalmente o seu perfil como figura universal no mundo da cultura, não deixavam grande margem de controvérsia mesmo para os mais fundamentalistas opositores do Presidente.
Alguns pensaram, no entanto, que o novo ministro seria essencialmente uma figura tutelar, mais centrada num papel de influência nas políticas do que propriamente na acção, conhecida que é a falta de vocação que artistas e intelectuais geralmente demonstram para o desempenho de cargos políticos ou de gestão.
Surpresa para uns, menos surpresa para aqueles que melhor o conheciam, em poucos meses, Gilberto Gil, mudou radicalmente o paradigma da política cultural brasileira. Tomou posse em Janeiro de 2003 e logo deu início a uma reforma estrutural do Ministério da Cultura. Agilizou estruturas, descentralizou, alterou os critérios de incentivos. Tudo com o objectivo de levar a todo o país, desde o litoral desenvolvido do eixo São Paulo-Rio de Janeiro às pequenas comunidades do vasto interior brasileiro, um projecto cultural novo, capaz de transformar os cidadãos e a sociedade.
Um dos seus grandes instrumentos foi a criação dos chamados Pontos de Cultura, nem sempre bem aceites pelos privilegiados do sistema anterior, mas que foi a fórmula encontrada para “atender áreas periféricas que nunca foram atendidas”. Isto valeu-lhe críticas de figuras importantes da cultura brasileira, mesmo de alguns amigos, mas a polémica parece estar agora ultrapassada pela realidade que é o êxito desta iniciativa.
Com esses Pontos de Cultura que Gilberto Gil está a espalhar por todo o país, os meninos das favelas ou do interior mais isolado aos quais foi proporcionada uma pequena actividade cultural que os retira da rua e ajuda à sua formação, seguramente vão ser bem diferentes das gerações que os antecederam. Serão um novo rosto do Brasil a despontar.
Embora Gilberto Gil, nos anos 80, tivesse já feito uma incursão na política como vereador do ambiente da Prefeitura da Baía, onde deixou um conjunto de iniciativas inovadoras, talvez nunca tenha passado pelo seu espírito a ideia de alguma dia vir a ser ministro, mas este casamento entre cultura, arte e política, revelou-se uma união de sucesso. Saber como encarou o artista esta nova situação era uma pergunta que se impunha, mas que ele também deve ter feito a si próprio algumas vezes. Não admira que a resposta seja pragmática embora não desprovida de alguma ironia.
“Vejo isto com as mesmas reservas clássicas que Platão já tinha, mas também com muita generosidade, com muita capacidade generosa de compreender a possibilidade de uma nova relação entre o poeta e a República. Foi por isso que aceitei. É um desafio”.
Facto talvez raro, a política não anulou o artista, o poeta, o músico, o filósofo e o humanista. A arte também não anulou o político. Revelou, sim, um novo perfil de político que ninguém estava habituado a ver. Os dois mundos coexistem nele para bem de ambos. E em Julho do mesmo ano em que tomou posse, Gil tirou mesmo um mês de licença no seu ministério para fazer uma tournée pela Europa com um show dividido com Maria Bethânia.
A sua actividade como artista nunca foi interrompida. Além dos muitos espectáculos em que tem participado, ainda arranjou tempo para outras actividades como a presença em 2005 num baile de beneficência no Mónaco organizado pela princesa Carolina ou compor, em francês, o hino para o festival de Dakar “La Renaissance Africaine”.
A África e as suas culturas nativas é uma presença constante no pensamento deste baiano que as exalta, as sintetiza e lhes dá expressão na sua vastíssima e variada obra.
Reconhece, no entanto, que a visão do mundo dito civilizado, do mundo desenvolvido em relação à África ainda é “neocolonialista” e apenas para expansão de mercados, obtenção de mão-de-obra e matérias-primas baratas e criação de mercados de excedentes.
“Enquanto a situação permanecer assim – reconhece – não teremos realmente desenvolvimento global justo, harmonioso e digno, propriamente, das palavras avanço e civilização”.
Para alterar este quadro, Gilberto Gil lembra a necessidade de criar espaço para que a África seja considerada com a sua contribuição, com as heranças que vêm do passado.
“É preciso que o mundo dito civilizado e desenvolvido considere a África como um dos factores dessa própria civilização que foi obtida por elas”. E cita Caetano Veloso, quando este afirma que “a África civilizou o Brasil” acrescentando que se a África não tivesse vindo para o Brasil este não teria o processo civilizacional que tem hoje.
“É fundamental que o mundo desenvolvido considere isso e abra efectivamente o espaço para essa diversidade de modos de ser, de modos de conceber a vida, de conceber a ciência e o progresso”.
Pela ordem natural das coisas, ou se preferirmos, pela ordem convencional, Gilberto Gil, hoje ministro da Cultura do Brasil, deveria ser presidente ou director de uma qualquer multinacional, no Brasil ou algures no mundo, mas os genes da música, da poesia e da arte foram mais fortes. Uma carreira destas, que se poderia antever em 1964 quando concluiu a licenciatura em administração de empresas, começou a trabalhar no Ministério da Fazenda e mais tarde numa grande empresa, acabou por não se concretizar.
Um ex-futuro gestor
O seu envolvimento desde muito novo com o mundo da música e da cultura acabaria por subverter de forma natural essa expectativa e dar outro rumo à sua vida. Ainda tentou ser engenheiro, mas não conseguiu entrar para a respectiva faculdade pelo que a administração de empresas terá sido uma segunda opção.
Filho de um médico e de uma professora primária, Gilberto Passos Gil Monteiro – Gilberto Gil – nasceu a 26 de Julho de 1942 em Salvador da Baía, mas vinte dias depois foi viver para Ituaçu, no interior do Estado. Só regressou à cidade natal para fazer o curso ginasial.
Sob a influência de Luiz Gonzaga, em 1952, começou a aprender acordeão, a princípio com aulas particulares e mais tarde numa Academia que frequentou até 1956.
Escreveu os seus primeiros poemas em 1959. “Triste serenata”, um deles, seria mais tarde musicado. Foi acordeonista no conjunto “Os Desafinados” tocou até 1961 em festas de aniversários, escolas e clubes de Salvador, ao mesmo tempo que começa a aprender violão, influenciado por João Gilberto e pela bossa nova.
“Gilberto Gil – sua música, sua interpretação” foi o seu primeiro disco, gravado em 1963, ano em que, no decorrer de uma viagem a São Paulo para fazer um teste na empresa Gessy Lever, conhece Caetano Veloso e pouco depois Maria Bethânia e Gal Costa. Nessa época Gilberto Gil estava em formação para director da empresa, mas à noite tocava e cantava em bares. Estabelece parcerias com outros artistas, a música toma conta da sua vida e cada vez são mais os espectáculos em que participa.
Sob a direcção de Caetano Veloso apresenta em Março de 1965 o seu primeiro show individual, no Teatro Vila Velha.
O ano de 1966 marca decisivamente a sua carreira. Destaca-se na televisão, no programa “O Fino da Bossa” apresentado por Elis Regina na TV Record e é contratado pela Philips para fazer o seu primeiro LP. Abandona o emprego, muda-se com a mulher e a filha para o Rio onde no final do ano estreia com Maria Bethânia e Vinicius de Morais o show “Pois é”.
O Brasil vivia nessa altura sob a ditadura militar. No dia 27 de Dezembro, Gilberto Gil e Caetano Veloso são presos em São Paulo, ao abrigo do chamado Acto Institucional no 5, instrumento usado pela ditadura para retirar a liberdade aos artistas e aos cidadãos. Os dois foram levados para um quartel do exército no Rio de Janeiro. Em Julho, após um show de despedida no Teatro Castro Alves, os dois partem com as respectivas mulheres para o exílio em Londres, onde vão morar no bairro de Chelsea.
Juntamente com Caetano Veloso e outros músicos, desenvolve uma intensa actividade criativa. A partir de Londres, a sua carreira inicia uma curva ascendente que o levaria ao mais alto reconhecimento internacional. Os grandes palcos do mundo abrem-se à sua música. Ao longo destas décadas, centenas de espectáculos e tournées por todos os continentes fazem-lhe um curriculum impossível de enumerar pela sua extensão.
Ainda em Londres, participa num Jam Session, no Club Revolution, com músicos como David Simour, dos Pink Floyd e Jim Capaldi, do grupo Traffic.
Regressado do exílio em 1972, retoma a carreira no Brasil, mas os problemas com as autoridades não tinham terminado. Em Maio de 1973, durante a apresentação do Phono 73 da Philips, em São Paulo, juntamente com Chico Buarque, foram impedidos pela censura de cantar “Cálice”, canção que os dois haviam feito para este evento e que ficou proibida enquanto durou a ditadura.
Em paralelo com a música, a vida de Gilberto Gil é também profundamente marcada pela intervenção cívica.
Foi presidente da Fundação Gregório de Matos, uma espécie de secretaria municipal de cultura de Salvador, através da qual desenvolveu e intensificou as relações culturais com África. Abriu a Casa da Baía no Benin e a Casa do Benin na Baía, ao mesmo tempo que impulsionou o projecto de recuperação do Centro Histórico.
Em 1989 foi eleito para a prefeitura de Salvador onde presidiu à comissão do ambiente e criou o Movimento Onda Azul, um projecto ambientalista para defender as águas dos mares e dos rios brasileiros.
Mais tarde filiou-se no Partido Verde, de cuja Comissão Executiva Nacional foi membro e a convite do Woodrow Wilson Centre, participou em Washington nos debates para elaboração de novas políticas ambientalistas para a América Latina.
Com Tom Jobim, Caetano Veloso, Sting e Elton John, participou, em 1991, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, num show para angariação de fundos para a Fundação Mata Verde.
Mas nem a política nem as suas actividades de natureza cívica interferiram com o artista e o criador. Em 1999 lançou o livro Gil Luminoso, acompanhado de um CD expressamente gravado para este projecto e que foi considerado por muitos como uma das suas melhores produções. E no ano passado, em Julho, reuniu mais de 100.000 pessoas na Praça da Bastilha, em Paris, para assistir ao show Viva Brasil.
Jack Lang, ministro da cultura francês, atribuiu-lhe o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, a Real Academia Sueca de Música deu-lhe o Prémio Polar de Música e o governo francês nomeou-o Grande Oficial da Legião de Honra. Agora, com 64 anos, Gilberto Gil continua no auge, um símbolo do Brasil e um artista do mundo.
“Gosto desta presença da língua portuguesa no mundo”
Gilberto Gil recebe-nos para esta entrevista na sua residência particular, num dos modernos edifícios de São Conrado, requintada zona do Rio de Janeiro. É um apartamento com uma longa varanda sobre o mar que lhe proporciona uma deslumbrante panorâmica. Bom gosto, simplicidade da decoração, muitos livros, muitos discos, muitas fotografias, peças de artesanato e algumas flores, criam uma ambiência que sugere mais o refúgio do artista e criador e menos do político. E a confirmá-lo, uma conversa de cerca de duas horas revelou essencialmenteser o artista, o poeta e principalmente o ser humano que acredita na possibilidade de um mundo melhor, que o Brasil será a grande potência humanista do terceiro milénio, mas não quer nem deseja ser uma potência hegemónica. Manifesta a sua agradável surpresa por existir em Macau, na China, uma revista em língua portuguesa, fala do colonialismo com uma visão histórica e sociológica alargada, dos seus males e dos seus contributos, da importância da língua portuguesa e considera os portugueses como “invasores menos invasivos” porque levaram a alma ibérica aos povos que submeteram mas tiveram sempre uma capacidade de diálogo cordial mínimo com eles.
– Como caracteriza a política de cooperação do Brasil com a China e restantes países de língua portuguesa?
– Há cada vez mais no Brasil a consciência de que nós somos formados por partes importantes da África e da Ásia e que temos com essa nossa formação obrigações de consideração. E a política diplomática brasileira já desde há alguns anos vem tentando dar conta disso. Cada vez mais cresce a consciência do país em relação à sua formação e às suas respostas à sua própria história.
Os países de língua portuguesa, tanto na Ásia como no continente africano, ou nos pequenos núcleos asiáticos, são os que mais de imediato despertam interesse por causa da fala comum, da língua comum.
A língua é o primeiro elemento da alma de um povo, especialmente nessas formações nacionais que se deram pelo colonialismo, pela colonização europeia, grupos de francofalantes, grupos de colonização inglesa, espanhola, grupos de colonização portuguesa.
Isso é um elemento de aproximação imediato entre os países de língua portuguesa. E o Brasil tem dentro desse conjunto uma grande importância porque é o país com maior número de falantes. Dos mais de 200 milhões de falantes o Brasil tem 180 milhões. É uma coisa importante.
– Pensa que essa política atingiu os níveis desejados e está a fazer o seu percurso ao ritmo pretendido?
– O Governo do Presidente Lula marca um momento de intensificação dessa preocupação. Temos considerado de formas variadas os países de língua portuguesa. Temos considerado, tanto no Ministério da Cultura como em outros ministérios, uma política de aproximação com o cérebro da comunidade de língua portuguesa. Digo o cérebro no sentido da área pensante, da área formuladora, do conjunto da conceituação e dos núcleos de pensamento sobre isso.
No Ministério da Cultura, sob a nossa direcção, ultimamente é uma das áreas em que se tem vindo a trabalhar: as diversas lusofonias da África e da Ásia, aproximando-nos com Goa, com Macau, com Timor e com os países de língua portuguesa em África.
– A presença da língua portuguesa em Macau é um factor que ajuda a desenvolver as relações com a China?
– Por tudo o que conheço da maneira como a China trata Macau, tenho a impressão que ela o considera um portal importante para a sua abertura ao mundo da língua portuguesa. E também que o facto do Brasil, com a dimensão que tem, com a posição estratégica que tem hoje no mundo, sendo um país de língua portuguesa, para além de Portugal, para além dos países africanos que também são importantes para a China – veja-se o trabalho que está fazendo em Moçambique, em Angola e em todos os lugares – pela base de fornecimento de materiais, pela importância económica, inclusive, tornou-se numa área importante de focalização por parte da China.
Nesse sentido, a existência deste território de língua portuguesa, tornou-se estratégico para ela. Tanto que, nos últimos anos, com a abertura da China ao mundo, uma China globalizada, uma China do mundo contemporâneo, Macau passou a ter um tratamento por parte da China como não tinha havido até então. Houve uma incorporação. De um mero enclave na China, como era tratado até então, virou uma das possibilidades da própria realidade chinesa de hoje.
– Nas suas intervenções públicas, e na arquitectura da actual política cultural brasileira, parece desenhar-se a ideia de fazer do Brasil uma grande potência de novo tipo, tendo como armas a cultura, a educação, o pacifismo e o desenvolvimento. É correcta esta interpretação?
É correcto para os que compartilham essa visão. Primeiro, porque o século XXI e os tempos que virão pela frente, são tempos em que a dimensão cultural, a dimensão da informação, do património imaterial, a dimensão intangível da vida humana, todas essas coisas vão ganhar uma importância muito grande, acima da importância que até hoje teve a vida imaterial no sentido clássico, das disputas, das conquistas de território, do expansionismo fundado numa dimensão materialista da vida, tal como se deu até agora.
A base de formação das grandes potências mundiais foi sempre a capacidade de conquista e a garantia dessa possibilidade de conquista com os aparatos militares. Penso que a própria configuração do processo civilizacional moderno nos leva a indicar que o mundo e que a civilização precisam de outro parâmetro, de outro paradigma para a continuidade do processo civilizacional.
– Que papel atribui ao Brasil nesse processo?
É preciso identificar as nações, os conjuntos humanos, seja de países e nações, mais vocacionados para isso. Vejo o Brasil como o país com essa vocação porque é um conjunto nacional que não logrou muitos êxitos no desenvolvimento de uma potencialidade militar bélica, ou mesmo económica, na economia da primeira e segunda fase da economia agrícola clássica, da economia industrial clássica. É um país que está pronto agora para oferecer capacidade e potencialidade numa nova configuração da vida económica mundial.
A mesma coisa se pode dizer em relação à questão militar. É um país que viveu sempre pacificamente, não investiu no expansionismo mesmo territorial, não invadiu, não tem inimigos na América do Sul, nunca fez guerras de conquista. A vir a ser uma potência, sê-lo-á pelo lado do diálogo, pelo lado da expansão dos seus dotes culturais, através da sua diversidade cultural, da sua vocação para a paz, para o entendimento. Nesse sentido é uma potência do terceiro milénio.
– Talvez a potência que neste momento faz falta ao mundo?
– Quem compartilha desta visão do mundo e aqueles que podem contribuir para ela, acham que é correcto colocar o Brasil nesta perspectiva.
– Há quem seja céptico em relação ao futuro. José Saramago, talvez desencantado com o que vê pelo mundo, afirmou recentemente que a raça humana tinha falhado. Partilha dessa perspectiva?
– Com essa máxima, dita de tal forma, com desencanto total com a raça humana, é preciso saber em que tipo de encantamento anterior as esperanças estavam fundadas. No encantamento em que essa ideia de progresso era a ideia vinda da herança grega, da racionalidade filosófica, da busca da verdade, da busca das essências, da busca de um progresso, de uma vocação da humanidade para uma acumulação sempre maior, sempre maior, rumo a um praxis grandioso? Em relação a esse propósito talvez a humanidade tenha decepcionado.
Em relação a uma outra visão de que o erro é um atributo natural, de que a “incompletude”, a imperfeição, é a medida do homem, se formos por essa outra máxima, não acho que tenhamos definitivamente decepcionado como sociedade humana, como seres humanos, porque ela continua aí em todo o conjunto existente, nessa trajectória de aperfeiçoamento possível, mas sempre com uma distância da perfeição. A perfeição nunca é atingida.
– Poderemos considerar a África como um potencial à espera de se exprimir e contribuir para um mundo melhor?
– De uma certa forma tenho a impressão de que já se exprime e vem-se exprimindo. O que não foi possível, até agora, foi dar lugar a essa forma de expressão no processo da civilização contemporânea que abandonou todas as culturas tradicionais fundadas na sabedoria, substituindo-as todas por esse projecto fáustico, ocidental, dentro do qual estariam obrigadas a se enquadrar.
– Existiam na África pré-colonial estruturas sociais avançadas para a época, baseadas na sabedoria, mas não sobreviveram…
– O colonialismo impôs o modelo da sua própria agenda, da sua própria vontade e excluiu todo esse outro campo na África, na Ásia, na própria América do Sul.
No momento em que o processo da cultura global, da cultura universal, faça de novo considerações justas ao significado dessas velhas culturas, dessa cultura pré-revolução industrial, pré-capitalismo, pré-monocultura ocidental que se impôs através de vários instrumentos que foram usados inclusive a religião cristã, o monoteísmo cristão; no momento em que haja compreensão para que seja possível caberem dentro desse processo civilizacional os outros olhares, as outras formas, as outras leituras que outras civilizações fizeram da importância do ser humano, inclusivamente a questão da ciência, da filosofia; na medida em que houver lugar para outras ciências, outras filosofias, outras maneiras de compreender que já foram grandiosas em outras civilizações tiverem de novo possibilidade de reequilibrar o jogo e o conjunto da maneira de caminhar da sociedade humana, de toda ela, então acho que a África, a Ásia, a América terão a sua vez de novo.
Mas enquanto houver essa hegemonia do eurocentrismo, que tem nos americanos do Norte a sua expressão mais pura, enquanto houver essa hegemonia e enquanto formos meros subsidiários dessa visão hegemónica, fica difícil a florescência da África e da Ásia.
– O escritor moçambicano Mia Couto, num artigo escrito recentemente, criticou aqueles que nos querem convencer de que “para sermos modernos temos de ser americanos”. Como se combate essa visão?
– Só quando tivermos plena consciência de que não devemos, não precisamos de ser americanos. Não temos nada contra eles. Nada mesmo, mas nós somos outros.
– Em 2004 visitou a Universidade de Macau. Ficou de algum modo surpreendido com o que encontrou?
– De certa forma sim. Encontrei ainda uma dimensão, um mundo de língua portuguesa intacto na sua forma mais fossilizada, digo fossilizada no sentido do que ainda está escrito, no que é registo histórico, nos nomes das ruas, nos nomes dos negócios, da estrutura os negócios. Mas não na fala. A língua portuguesa já é pouco falada. Este talvez seja o momento primordial para uma revitalização completa do significado de Macau na China e do que é de novo a língua voltar a ser falada.
Quando estive na Universidade de Macau, encontrei-me com representantes do Instituto Português do Oriente e há hoje uma compreensão muito grande da necessidade de restaurar a fala portuguesa em Macau.
– Não estará isso a verificar-se já com o acréscimo de interesse em Macau pela aprendizagem da língua portuguesa?
– Voltamos àquela questão já colocada no início, que é a importância que tem hoje o território de língua portuguesa para a própria China mundializada e para as relações da comunidade internacional com a China, sendo que, dentro dessa pluralidade, o mundo de língua portuguesa é uma dessas fracções importantes.
A China atribui hoje uma grande importância ao mundo de língua portuguesa por causa de tudo o que já dissemos: do Brasil, da África, de Portugal. Portanto, tendo ali já um portal, é importante este ser um interface historicamente estabelecido ali. É importante mantê-lo, aprimorá-lo, desenvolvê-lo. E isso, sem dúvida alguma, passa pelo retomar da fala portuguesa, da língua portuguesa falada em Macau e até por outras pessoas dentro do continente chinês.
– O que são verdadeiramente os Pontos de Cultura, que introduziu no seu programa de governo e foram considerados por alguns estudiosos, como algo de inovador em políticas culturais?
– É uma actividade comunitária que associa a cultura à educação, responsabilidade ambiental, responsabilidade social. Uma série de coisas, como sejam, focos de actividade humana onde o conjunto dos interesses humanos esteja presente. E isso é cultura. E é mais do que cultura. É ecologia, é economia, é fortalecimento comunitário, desenvolvimento social, etc. Desenvolvimento, no sentido mais amplo.
Essas são as premissas para um sentido de desenvolvimento na sua forma mais ampla. E essa é a diferença. Em vez de uma casa de cultura ou de um centro cultural, onde você tem uma certa visão do que seja o fazer, o elaborar cultural e o gerir e tenta impor isso a uma determinada comunidade, deixa a comunidade fazer, exprimir-se, mostrar os seus grandes equívocos ou os seus grandes acertos e apoia esse processo dialéctico de construção.
Os Pontos de Cultura têm essa função de identificar acções e processos culturais que estejam em andamento a partir da própria vida cultural da sociedade e apoiá-los, nas universidades, nas favelas, nas tribos indígenas, nas periferias das grandes cidades, nas prefeituras municipais, no associativismo, seja ele sindicalista ou de qualquer outra espécie.
Ver que modos de associação existem na sociedade e como apoiá-los, porque todos eles têm uma dimensão cultural ou têm um propósito cultural. Não há propostas na sociedade humana que não sejam culturais. Toda a produção material da sociedade é para o enriquecimento do convívio. Portanto é cultural.
Nesse sentido, quando apoiamos uma comunidade de reciclagem de lixo, estabelecemos um Ponto de Cultura. Eles estão ali buscando a sustentação da sua vida económica, da sua vida afectiva, da sua vida educacional, da sua vida enquanto saúde, da sua vida enquanto responsabilidade social ou ambiental. Por isso são Pontos de Cultura importantes. Cultura como dimensão sociológica, ecológica, antropológica, como elemento integral, como integralidade da vida humana.
– Este projecto encontrou resposta por parte dos seus destinatários?
– Tem tido uma bela resposta no país. Há uma compreensão quase que imediata. Parece uma mágica, mas é uma coisa bem simples. Parece a invenção da roda, mas não é.
Hoje estamos com cerca de 500 Pontos de Cultura e devemos chegar ao fim do ano com 600. A nossa avaliação é de que temos no país umas 200 mil manifestações deste tipo [de acções susceptíveis de se integrarem na actividade dos Pontos de Cultura], pelo menos visíveis e significativas. Precisamos de chegar aos cinco ou dez mil Pontos de Cultura no Brasil. Esta seria a escala recomendada que daria vazão real à dimensão do atendimento. Aí, essa dimensão da vida brasileira estaria atendida. Se pudermos estabelecer nos próximos dez anos uns cinco ou dez mil Pontos de Cultura deste tipo, teremos feito uma revolução.
– O somatório de tudo isso disso faria do Brasil um enorme Ponto de Cultura à escala mundial?
– Seria o Brasil nos trilhos da sua vocação de se tornar uma potência cultural. Potência cultural no sentido da diversidade, não na monocultura do cinema americano, da literatura europeia ou das artes plásticas eurocêntricas, mas cultura como natividade.
– A crescente colonização cultural, através dos múltiplos instrumentos de poder de que dispõe, representa hoje um perigo real para a afirmação das diversas culturas dos países menos desenvolvidos?
– Esse é um dos perigos. Que nos submetamos a essa colonização que agora tem recursos extraordinários com a cultura digital, com a informática, com a cibernética, com as nano tecnologias, a biotecnologia, etc. É preciso que toda essa riqueza seja distribuída.
– Embora para que uma nova cultura permaneça não deve ser impositiva aos que a recebem?
– Essa foi uma das grandes contribuições da alma portuguesa ao mundo. Ainda que colonizadores, ainda que invasores, foram-no num certo sentido, mas foram invasores menos invasivos.
– Talvez porque os povos em si nunca são invasores e a dimensão do país era pequena?
– Falo do Estado, que trouxe toda a cultura portuguesa. Foram os representantes da Coroa que trouxeram o processo civilizatório. Mas esse processo vinha prenhe. Veio cheio de todas as outras coisas. Veio com a alma do povo, com a criatividade.
– Como vê a actual situação da língua portuguesa no mundo?
– Gosto desta presença da língua portuguesa no mundo. É um dos acervos mais importantes da colonização. É um acervo que traz essa alma ibérica, essa capacidade de aventura que levou os portugueses e os povos ibéricos aos mares do mundo.
Tudo isso e uma certa capacidade que tiveram de, apesar de exploradores, manterem níveis importantes de diálogo com as terras descobertas, com os povos submetidos. A língua portuguesa manteve nas relações que impôs ao mundo aonde foi, uma dimensão cordial mínima. É uma das características. A cordialidade, o coração. O mundo da língua portuguesa não é um mundo totalmente tomado pela racionalidade. É um mundo que se manteve sentimental, intumescente, poético, em certa medida. E isso interessa-me muito. Interessa muito ao mundo. Quando digo que o Brasil tem essa vocação para uma presença de feição nova, simbólica, pacifista e cultural, muito desse potencial, muito desse instrumental que o Brasil tem, é dado pela língua, pelo facto de ser a língua portuguesa.
– Numa sua intervenção, em 2004, na Universidade de Pequim, falou da necessidade de se encontrar “um terceiro tempo” psicológico, sociológico, antropológico, que caracterizou como o equilíbrio entre a necessidade de acelerar e ao mesmo tempo a necessidade de uma velocidade reduzida que nos permita “viver, contemplar e celebrar”. É isso que terá faltado às sociedades modernas e que países como o Brasil e a China poderão protagonizar?
– Há um amigo nosso, um criador brasileiro, um intelectual e artista da minha geração chamado Jorge Mautner, que assimila o tempo vivido pela Baía, pelas culturas em torno do lúdico de quase todo o litoral brasileiro, do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luis do Maranhão a Belém do Pará.
Atribui-lhes um tempo taoista e diz que o Brasil se espelha nessa grande natureza que tem aqui, que o Brasil tem cultivado ao longo de todo esse tempo, um tempo taoista, um tempo que simultaneamente pode ser dedicado ao fazer, ao produzir, mas sem descurar, sem deixar de atender a essa dimensão contemplativa profunda, a essa dimensão do convívio harmonioso com as evidências da vida. E que se preocupa também com a decifração do enigma da vida através da técnica, do progresso, mas que se comporta com o fundo, o património existencial, o património de imanência já existente em tudo pelo simples facto das coisas serem, das coisas existirem e nós, seres humanos, sermos parte da existência dessas coisas.
Isto caracterizaria um tempo taoista, um tempo pré-socrático, pré-filosófico, pré-ocidental.