Estão algures entre a amante caprichosa e o psicólogo da bisca. Sabem os códigos, os vícios, as superstições, sobretudo as forças e as fraquezas do jogador. Escolheram ser croupiers (ou dealers, em língua inglesa) pela mais rasa das razões: o dinheiro. Agora, do outro lado da mesa, acreditam que conquistaram o seu lugar ao sol. Só que o sol quando nasce não é democrático.
Peter Cheong, coordenador do curso de croupiers, do Centro de Formação do Turismo e do Jogo, na Taipa, começa por fazer uma ressalva – “o segredo para ser bom profissional não é apenas a skill, a capacidade, mas parte também da formação pessoal de cada um”. Depende das características de comportamento, do feitio, da cooperação com outros colegas. A formação teórica é importante mas talvez mais importante é saber trabalhar em equipa.
Na sala de formação, uma imensa réplica de casino, António Lei, ao lado de Peter, subscreve. Diz que é tudo uma questão de carácter. “Depende de como são feitas as pessoas que aqui chegam”. “É preciso ver se têm potencial. Se não demonstrarem esse potencial, isso também não quer dizer que não possam vir a trabalhar no casino”. Há sempre alternativas. “Podem ir para os serviços administrativos, podem ser caixas… Mas nem toda a gente tem o perfil adequado porque há características essenciais”.
Money Loi, directora de Operações do casino Waldo, do grupo Galaxy, concorda com o formador. Salienta a capacidade diplomática do croupier, a faculdade de improvisar e de gerir conflitos. “Precisamos de gente com alguma experiência nas mesas para acalmar algum jogador que esteja mais exaltado, que consiga gerir os problemas. Por exemplo, se há cartas a mais nas mesas é preciso verificar isso tudo!”.
“Têm que ser pessoas calmas, capazes de apaziguar qualquer conflito que aconteça durante o jogo”, retoma António. E com “uma aparência cuidada”, ainda segundo Money, “porque ter uma aparência cuidada, um bom aspecto, sorrir, é muito importante. No fundo, ele representa não apenas o casino, mas também Macau”.
“É claro que muita gente ambiciona ser croupier por causa dos salários, que são mais altos do que em qualquer outro lado”.
Quem conseguir trabalhar como croupier pode atingir um rendimento mensal de 20 ou 30 mil patacas (2500 ou 3750 dólares norte-americanos) por mês. “Basta conseguir um lugar num casino. Basta conseguir essa oportunidade”, simplifica António. Só assim se compreende a adesão que a profissão suscita.
O Centro de Formação tenta responder às expectativas. São 180 horas repartidas por um período de quatro meses com ensino de línguas, inglês e mandarim, informática, e a formação técnica. Além disso a Universidade de Macau criou um curso de Gestão de Jogo que tem este ano os primeiros licenciados. Um curso muito procurado, sobretudo por alunos da China Continental e que conta com professores de Las Vegas e Nevada.
Nesta fase, o Centro de Formação do Turismo e do Jogo aposta no ensino de vários jogos de casino, em especial, bacarat e black jack. O centro dá ainda formação no domínio do chamado “costumer service”, o tratamento que é dispensado ao cliente.
“A parte de ‘general knowledge’ é essencial”, explica, Peter. “Muitos dos candidatos que aqui chegam possuem apenas o mínimo recomendável, e é preciso dar-lhes alguma formação no domínio do inglês, do mandarim, ou da informática”.
Na escola de croupiers ensinam que o importante é o trabalho de equipa para que o jogo decorra de modo suave, sem confusão”, explica Money, e “depois, o costumer service”. Para além das maneiras é importante não confundir ou exaltar o cliente; “evitar gestos estranhos na distribuição das cartas”, é uma regra cardeal.
O estigma de Ícaro
Tal como é um exercício de inteligência o rendilhado que o croupier tece em redor do cliente. E depois, conservá-lo imobilizado naquela teia branca, emocional, entre o abandono da mesa e a obsessão do azar, siderado na simpatia circunstancial, cativado pela confiança profissional e dominado pela encenação. A gestão dessa hipnose é um processo arriscado, feito de cálculos e ponderações, construídos em gestos e maneirismos estudados, até que, no fim, o croupier leva a sua carta a Garcia.
Da distância depende o sucesso. É essencial cultivar uma simetria discreta entre os dois. A aproximação excessiva seria fatal, como Ícaro, outra vez, derrubado pelo sol. “É imperioso manter as distâncias”, avisa Money. “Fazemos alguma conversa, sobre o tempo, sobre a comida, de onde vêm os clientes, o que acham de Macau, e esse tipo de histórias. Falamos durante alguns segundos. Se for preciso explicamos como é que o jogo funciona mas ficamos por aqui”. Se o cliente ganha, “partilhamos o entusiasmo. Dizemos qualquer coisa como ‘oh, é um homem com sorte, estou a ver! ‘”. Já quando o cliente perde? “Nunca podemos sorrir. Nunca! É uma regra de ouro. Temos que apoiar o cliente! Têm sempre que sentir que têm razão em estar revoltados, e têm que se sentir apoiados por nós. Temos que lhes fazer sentir o nosso apoio e dizer-lhes palavras de encorajamento, que para a próxima será melhor”. Também por uma questão estratégica, de fidelização do cliente.
Amizade é palavra proibida. “Se não”, observa agora Peter apontando para o ar como que a indicar a presença de uma câmara de vigilância, “pensam que estamos a ajudá-los, que andamos aí pelo casino a fazer-lhes descontos nas bebidas e ajudá-los no jogo”.
Em situações extremas, de desespero, em circunstâncias quase terminais, cessa o contrato de assistência. “Se os clientes chegam a um estado de desespero, que é que podemos fazer? Não podemos fazer nada. Não saberíamos como! Além de que não somos assistentes sociais. E também não podemos estar no casino e a uma certa altura aconselhá-los a não jogar”, esclarece o formador.
Razão e superstição
Estas são as situações limite que, por contágio, podem afectar também a estrutura emocional do croupier. Levá-los à depressão continuada que os faz pensar duas vezes, desanimar, até que abandonam. “Se um croupier está com problemas pessoais, se é mais depressivo, se tem muito trabalho, se enfrenta situações de grande altercação, tento falar com ele, tento acalmá-lo, compreendê-lo”, adianta Money. Estes casos de angústia emocional acontecem com mais probabilidade em determinado tipo de jogadores, que trazem a Macau “outro modo de jogar”, observa Peter. Tudo depende do tipo de jogador. Há os que são “mais discretos, mais gentis na maneira como jogam”, ao passo que outros “são mais rudes, mais agressivos no jogo”. Há que aprender a lidar com esse tipo de jogadores, sobretudo quando perdem. Falam alto e nós temos que aprender a lidar com isso. Às vezes perdem tudo e endividam-se”.
Peter ensaia um perfil do jogador-tipo. “Muitos jogadores que aparecem são pequenos comerciantes, gente que trabalha nos serviços. Não são aqueles camponeses que mal têm dinheiro para comer”. Mas os croupiers são profissionais da indústria do jogo “e os clientes têm de estar conscientes do que devem ou não devem fazer. Não somos nem psicólogos nem assistentes sociais”, repete.
A sombra da morte, que a precariedade do jogo sublinha, é uma refracção do imaginário de Las Vegas, das paisagens desumanizadas dos grandes casinos, dos néones e do “fake”, das vendettas e do deserto, o território derradeiro do deve e haver de casino. Os casos de desespero coroam um estado de espírito que muitos clientes já levam para a mesa de jogo. Em muitos casos o jogo “é uma questão de vida ou de morte”. “Joga-se com a vida nas mãos, e muitos nem sequer querem saber de ‘costumer service’. Querem chegar e ganhar, logo, ali”. Ao contrário de Las Vegas, onde “os clientes preferem as slot machines, em Macau jogam mais bacarat ou black jack porque isso lhes assegura dinheiro na hora”.
A obsessão pelo jogo chega a roçar o domínio da pura irracionalidade. Não é que na hora de apostar “a vida ou a morte”, a razão venha explicar as razões que o impulso desconhece mas onde a lógica do acaso poderia dominar é substituída, no fim das contas, pela mais religiosa das superstições.
“A partir de uma certa altura, começam a entrar no casino por uma das portas laterais”, exemplifica António Lei. “Houve lá um dia que ganharam muito dinheiro e então convencem-se que foi por terem entrado por aquela porta. A partir daí passam a entrar sempre pelo mesmo sítio”. Ou, em vez da porta, escolhem “sempre o mesmo croupier, ou vestem certas roupas, não lavam o casaco ou a camisa que tinham vestido daquela tal vez”, ou então, ávidos leitores de almanaques, “jogam a determinados dias ou a dadas horas do dia”.
Vencer a maldição
Todas estas alquimias do casino constam do programa de formação dos aprendizes de feiticeiro. Nem todos passam no teste, porém.
Joe, 30 anos, é um peixe de águas profundas. Atira um ar de quem se sente o rei do casino. Estende a mão com voluntarismo, cumprimenta com firmeza, e explica-se como quem domina as subtilezas do mundo do jogo. E domina. “O meu hobby é coleccionar certificados, graduações. Sou PR [Public Relations] no casino, trabalho também nas salas VIP”, mas achava que precisava de ter mais conhecimentos sobre outras áreas, “sobre como é que as mesas funcionavam”.
Se já é entendido, Joe pretende tornar-se um especialista. “Ando nos casinos há vários anos”, explica. É uma herança que recebeu da família, como que uma maldição sublimada do outro lado da mesa. O pai, um chinês indonésio, perdeu fortunas no casino e foi isso que talvez tenha imunizado Joe das tentações do vício. “Não me entusiasma, não tenho tentações. É apenas a minha profissão, onde ganho o meu salário, mais nada”. O dinheiro atraía “e decidi candidatar-me. Mas agora queria mudar de ambiente”. Daí a paragem pelo centro de formação embora faça intermitências com as salas VIP do casino. Joe é um analista do contexto, sabe desenvolver um discurso sobre a tendência do mercado. É assertivo: “O futuro de Macau não é o jogo de massas”. O perfil de Joe é excepcional face ao candidato-tipo, como Wen, nascido no Continente, esforçado, com uma dose irregular de aventureirismo e sentido de missão. Veio para Macau, diz, “pela filha”. Há dois anos tomou a decisão porque queria garantir à petiza o que nunca conseguiu ter. É um percurso característico das motivações da imigração. “Ser croupier é atraente, e com este curso é fácil encontrar trabalho”. Na China, Wen trabalhava numa empresa de decoração de interiores. “Penso que para a minha filha o melhor seria estudar aqui. E se me esforçar sei que posso ser bom croupier e ficar por cá”, atira, convicto. Trabalho e família andam de mãos dadas neste mundo. Quantos não foram os croupiers que entraram solteiros no casino e, meses depois, saíram casados. Apesar do higienismo que as arquitecturas de interiores transpiram, existem fracções de humanidade nos casinos. É nos quinze ou vinte minutos de intervalo, em cada duas horas das oito que leva um turno, que os croupiers ensaiam aproximações que, tantas vezes, levaram ao casamento e à constituição de família. Não é estranho que os dois membros do casal permaneçam no casino, mas a nova condição obriga ao cumprimento das disposições gerais. O que o amor uniu, por uma questão de segurança, a mesa de jogo terá de separar, não vá o entusiasmo tecê-las. E, por isso, entre marido e mulher há a regra que impede a partilha da mesma banca. No mais, o casino não interfere. Eventualmente, na organização dos horários, como é o caso do Galaxy. “Preferimos que trabalhem no mesmo turno, se a operação o permitir”, dizem os responsáveis. De resto, não há regras. Portas fora, o casino não interfere. Já lá vão os tempos das férias não pagas ou do trabalho o ano inteiro. Os tempos são novos e os interessados tantos. Basta ver as contas. Para dentro de três anos, o Governo espera triplicar o número de croupiers dos actuais doze mil para cerca de 36 mil. Não será por acaso nem por falta de alternativas. Apostam numa vida de sucesso.
É humano. Demasiado humano.