Apesar da enorme riqueza cultural que a África esconde, não é fácil aos criadores africanos fazer emergir esses valores e transportá-los para a dimensão universal que merecem. Guerras, fome e subdesenvolvimento económico continuam a limitar a libertação dessa riqueza cultural e a possibilidade de a oferecer ao mundo. Mas há homens que ultrapassam essas limitações e rompem as fronteiras do seu meio.
Flora Gomes, realizador guineense que se impôs internacionalmente, é um desses casos. Nesta sua entrevista concedida em Lisboa, de que se publica um extracto das passagens mais significativas, fala mais do cinema africano e muito menos de um percurso que já o notabilizou internacionalmente. É sobretudo a sua África e a cultura “escondida” deste continente que ele pretende servir e dar a conhecer porque acredita que na África está o futuro e esta tem muito para oferecer ao mundo. Mas, subjacente e menos escondido na sua obra, nas imagens, na música, na alegria ou na melancolia que por vezes transmite, está sempre uma clara mensagem de fraternidade universal.
– “Nha Fala” é uma história quase verídica baseada nas crenças e tradições africanas ou uma parábola?
– Não é uma história real, é uma vivência de um homem que nasceu em África e que viveu em África. No meu caso consegui utilizar este instrumento para contar a parte positiva do nosso continente.
Muitas vezes, quando se fala de África, nós só vemos uma parte. Não vemos a outra. É como a lua. Eu quis contar aquela parte que estava escondida.
Evidentemente que, como todos os povos, vivemos com os nossos problemas. Não estou a querer dizer que não há guerras, que não há as crianças acorrentadas por causa das guerras, mas, com todos esses problemas, nós temos a nossa maneira de viver.
– Existe um novo cinema africano?
– Eu acho que ainda não há uma cinematografia. O cinema africano é tão novo como o olhar das nossas crianças e penso que só teremos uma linguagem cinematográfica nossa, do nosso continente, quando em cada país conseguirmos fazer os filmes que queremos fazer, com o apoio das nossas autoridades e também de outros países, neste caso dos países com os quais tivemos uma história comum, caso de Portugal, França e outros mais. No caso da Guiné, estamos longe de o termos conseguido, mas estamos a forjar isso.
– De que modo o cinema africano interroga e questiona a realidade cultural e social africana? De forma ainda marcadamente ideológica ou há uma nova escrita?
– Há uma preocupação. Não diria que há uma nova escrita. Quem teve a possibilidade de ver muitos filmes, desde o senegalês Sembene, que é o pioneiro do cinema africano, até ao maliano Cissé, nota que há um olhar atento de cada um dos nossos realizadores. É verdade que não podem ser indiferentes aos acontecimentos no nosso continente. Temos que ter em conta todo o mosaico da nossa cultura, os grupos étnicos que compõem a riqueza dela e ter também em conta o que estamos a fazer, para quem e porque estamos a fazer este tipo de trabalho.
Penso que a cultura africana tem uma maneira de contar histórias que é muito bonita e no cinema podemos também fazê-lo. Vamos tentar dar mais cor, mais vida.
– Aquilo que alguns designam como “descolonização das mentes”, pode contribuir para uma nova cultura liberta dos traumas coloniais e criar um novo homem africano que não carregue mais esse peso na sua memória?
– Penso que este problema não é fácil. No contexto em que hoje nos movemos, o mundo está cada vez mais pequeno. Hoje acontece uma coisa em qualquer parte e essas imagens caiem-nos lá em África como a chuva que às vezes nos faz tanta falta. Nós queremos que as imagens dos nossos países passem também por aqui [em Portugal, na Europa…].
No dia em que elas puderem ser passadas sem nenhum obstáculo, da mesma maneira que nós absorvemos as vossas imagens, penso que só isso poderá libertar a nossa maneira de pensar.
O que acontece é que eu gosto de fado, mas quero que essa música que é tocada nos nossos países seja também ouvida. Penso que essa convivência é que pode fazer os africanos mudar. Compreendo que há uma mudança qualitativa, mas temos que mudar o que reconhecermos de negativo na nossa cultura, como em todas as outras culturas, para bem da humanidade. Isso é que é a mudança. Não é negando aquilo que é nosso em termos culturais e tentando abraçar outras culturas, sob o pretexto de que essas são as melhores.
Não há nenhuma cultura melhor. A melhor cultura que há no mundo é aquela que é capaz de estar aberta para absorver o outro e propor também a sua, sem perder a sua identidade. Isso é que justifica a grandeza da humanidade.
– Em que fase está o seu projecto do filme sobre Amílcar Cabral?
– Estou a trabalhar nisso há já um bom tempo, mas acho que agora houve um avanço que foi o facto de estar a realizar uma pesquisa apoiada pela Universidade de Brown, nos Estados Unidos, que me convidou para leccionar lá durante o semestre. Leccionar cinema, evidentemente.
Esta Universidade projectou todos os meus filmes e, não sei porquê, acharam que eu tinha uma escrita que lhes chamou a atenção, motivo desse convite.
Quero fazer um filme de ficção, mas gostaria de ouvir muita gente. Este é um objectivo, mas vou avançando noutros trabalhos porque considero que o filme sobre Amílcar Cabral é um grande projecto.
– Conheceu e conviveu muito com Amílcar Cabral. É verdade que, além do guerrilheiro e político, ele era também um artista?
– O Amílcar Cabral era um homem excepcional. Acho que ninguém conseguiu ainda descrever essa personalidade.
A primeira noção de estética que tive na minha vida foi aprendida com ele.
Quando estávamos na escola estava sempre a arranjar-nos a gola da camisa, não podíamos ter uma camisa a que faltassem botões ou umas sandálias que estivessem rotas. Quando não arranjávamos bem as camas ele ia verificar.
Isto é só para dizer que um homem que foi capaz de dirigir a luta de libertação da Guiné-Bissau, para não dizer dos movimentos de libertação em África, esse homem teve ainda tempo para pensar como uma pessoa devia fazer as camas, cortar o cabelo ou sentar-se à mesa.
Era capaz também de ouvir música clássica e músicas tradicionais de outros povos, como os cânticos dos mandingas, fulas, balantas e ouvia também mornas cabo-verdianas.
– Era um homem de paz que foi obrigado a fazer a guerra?
– Ele era um homem de paz. Foi obrigado a fazer a guerra porque percebeu que só fazendo a guerra a um sistema tão atrasado como era o sistema colonial português de Salazar, que inclusivamente tratava mal o seu próprio povo, poderia trazer a liberdade à Guiné. Só assim uma pessoa como eu se podia tornar cineasta.
Quem conhecia a Guiné-Bissau sabe que foi talvez a única colónia portuguesa que só teve um liceu em 1958, o que quer dizer que quem possuísse um diploma de 4ª classe era um luxo.
E hoje, os que vieram da luta, uma boa parte da minha geração, são pilotos de aviões, são pilotos de barcos, alguns grandes advogados em muitos países. Isto faz de Amílcar Cabral um homem excepcional.
– É correcto dizer que Cabral conseguiu fazer uma guerra de libertação sem gerar ódios?
– O Amílcar Cabral era um homem muito culto. As pessoas da dimensão dele não podem gerar ódio.
– É difícil fazer cinema na Guiné-Bissau?
– Algumas pessoas podem até cometer erros em termos de cinema, mas nós africanos não podemos. Se nos dão uma oportunidade temos que geri-la. Costumo dizer sempre que os cineastas africanos, e no meu caso concreto, quando fazemos um filme é como se estivéssemos a andar em cima de um estádio, de um campo de futebol cheio de ovos. Temos de andar de maneira a não os partir, porque caso contrário amanhã vamos ter muitas dificuldades.
Nós não somos detentores de todas as verdades, mas também não queremos que nos contem a história de uma forma que não seja verdade. Se não contarmos a nossa história virá uma pessoa de fora contá-la à sua maneira.
Felizmente há especialistas ocidentais que começam a contar outra história, que era pintada de outra maneira. Hoje há a noção de que o futuro será a África.
– As co-produções entre os países de língua portuguesa serão uma boa via para o desenvolvimento do cinema destes países?
– Penso que é uma forma de nos aproximar cada vez mais. Isso ajudaria, não só em termos financeiros, mas também para formar novos quadros e novos cineastas.