Foi no berço de Foshan, cidade da província de Guangdong, que a ópera cantonense primeiro encantou. Já lá vão oito séculos desde que a sua forma mais primária migrou do norte para o sul da China, onde cresceu e se fez ouvir por todo o país. É hoje em dia uma das tradições mais apreciadas na China. Das mais de três centenas de “irmãs”, é a de Pequim a mais afamada das óperas. Mas a “mãe” de todas elas é a ópera Kun, que a UNESCO declarou Património Intangível da Humanidade em 2003.
Na história da ópera cantonense contam–se episódios que trouxeram retrocessos mas acabaram também por impulsionar o desenvolvimento desta arte, que chegou a ser banida dos palcos, por nela se apregoar a propaganda ou por estar ligada a movimentos revoltosos. Homens houve que a usaram para fazer vingar os seus ideais, como o líder revolucionário que com o Kuomintang, o Partido do Povo, viria a pôr fim à monarquia e a proclamar a República, em 1911: Sun Yat Sen viu na ópera uma forma de chegar ao povo. Antes disso, outros o haviam tentado.
Um dos momentos-chave da história da ópera cantonense data de 1854. O cantor Li Wenmao e Chen Kaihe, líder do exército de Tiandi, transportaram nos “barcos vermelhos”, típicos das companhias de ópera no sul da China, soldados de uniforme operático. Queriam derrubar o governo Qing. A insurreição acabou por ser esmagada e a ópera cantonense foi banida durante quase 15 anos, embora operasse clandestinamente. Só voltou a sentir o calor das luzes da ribalta em Foshan, aí fixando o seu epicentro. Ainda hoje, esta arte respira muito boa saúde nessa cidade, por força dos cuidados que 400 companhias lhe dedicam.
Memórias de Macau
Na opinião do presidente da Associação de História de Macau, Chan Su Weng, esse foi “um dos momentos mais importantes na história da Ópera Cantonense”. Mas muito mais há para se contar no desfiar do passado da velhinha ópera. Historiador e jornalista, Chan traça no mapa memórias com raízes em Macau.
As cenas de “ópera cantonense que decoravam os tectos dos templos Á-Ma e Guan Yin, há 200 anos, retratam a importância do canto tradicional na região. Merecem ser recordadas por Chan, que elege o ano de 1797 como o primeiro a “evidenciar a existência desta arte em Macau”. Quase meio século passou até que as óperas saíssem às ruas, entrando pelos templos para deleite dos deuses e dos crentes.
Antes e depois de 1911, os ventos de mudança deitaram por terra alguns paradigmas da ópera. Uma equipa de peritos de Foshan liderou a reforma para a criação de textos e de um padrão de actuação que convencionou coreografias e áreas da representação. Hoje são mais de 11 mil as peças de ópera inscritas no compêndio de Liang Peijin, um perito de Hong Kong que se dedicou a esse inventário. Inspiradas em mitos, na História e na literatura clássica, as peças reflectem o pensamento filosófico chinês, os valores Pátria, da lealdade e do amor.
Chan arranca do baú da História o ano de 1917, época de neutralidade em Macau, virgem dos pecados da guerra, “pelo desinteresse das nações a ela ligadas: China e Portugal”, recorda. Pelo território iam e vinham gentes e a ópera conquistava o coração do público e de artistas amadores. Calados os gritos de revolta na China e em Hong Kong, um grupo de jornalistas do China Daily, nas mãos de Sun Yat Sen, fez de Macau o megafone dos seus ideais e criou a Companhia Yau Tin Ying, também conhecida por Chi Si (Homens de Elevada Aspiração). “Estava ligada à Sociedade da Aliança Unida”, um movimento liderado pelo próprio Sun Yat Sen.
Chan considera que a ópera viveu em Macau a sua época de ouro entre 1874 e 1960. E também o deve aos portugueses, que apreciavam esta tradição chinesa. Muito importante foi um antigo governador, António Sérgio de Sousa, que “aspirava a desenvolver a cultura na região, tendo para isso cedido terrenos sob a condição de neles se erguer um espaço dedicado à ópera cantonense”. Nascia assim o famoso Cinema Ching Ping, hoje morada de muitos fantasmas da ópera, embora intenções existam de lhe dar um futuro mais auspicioso.
O impulso da guerra
“O período do pré e pós-guerra pôs Macau definitivamente no mapa da ópera cantonense”, frisa Chan Su Weng. Não era o eco dos canhões que se fazia ouvir, mas o canto tradicional chinês. Eram palavras de resistência contra a invasão da China pelo Japão (1935-1945) que pontuavam as pautas. O grupo de jornalistas do China Daily, que nos bastidores contava com o poder de Sun Yat Sen, cantava contra o governo Qin, moldando a tradição a favor da mensagem. Também os cenários da ópera cantonense ganharam a terceira dimensão nos anos 20. Reflexos da então já florescente indústria do cinema de Hong Kong, sublinha Chan.
Macau era, à data, “uma espécie de quartel-general dos rebeldes”, recorda Chan. Mais do que ideais políticos, a ópera servia ainda “para motivar as pessoas a não consumirem ópio, que as inibiria de lutar”.
Inspiração quotidiana
Não era só o pensamento político a subir aos palcos de Macau, o quotidiano inspirava também os enredos. Cantava-se, por exemplo, o grande fogo que consumiu Dai Sha Tou, em Cantão.
Se a ópera cantonense conheceu sucesso em Macau muito o deve às famílias endinheiradas, que atraíam até às suas mansões companhias de outras regiões. Nos jardins, nos templos e nos cinemas, a ópera foi encantando a população. “Assim foi até aos anos 50”. Como naquele tempo, os espectáculos ainda hoje têm muitas vezes fins de caridade, o que, na opinião de Chan, tem desviado a ópera cantonense do seu fim primordial, o cultural, aquele que a levaria mais longe, pondo cobro a um declínio que já dura há 20 anos.
Futuro com o aval da UNESCO
Razões históricas para fazer de Macau o coração da ópera cantonense não faltam, garante o presidente da Associação de História de Macau, Chan Su Weng.
Há três anos que os governos de Macau, Hong Kong e Cantão trabalham na candidatura da ópera cantonense a Património Mundial da Humanidade. “Se a UNESCO aprovar o plano, existem grandes hipóteses de a tradição se desenvolver”, acredita Chan. Tendo sido uma forma de representação cultural que passou de geração em geração através da transmissão oral, a ópera “deveria ser preservada nos dias de hoje, em Macau, através da sua inclusão no currículo escolar, promovida junto das populações mais jovens, sustenta.
A recuperação do Cinema Ching Ping ou a troca de experiências com as outras regiões são algumas sugestões complementares do presidente da Associação de História de Macau para ajudar a desenvolver a ópera em Macau. Nos festivais temáticos anuais, continua, poderia apostar-se em acções educativas, aproveitando melhor a passagem de profissionais de ópera vindos do interior do país e de Hong Kong. “É importante ainda que esta arte chegue às comunidades não chinesas de Macau, para uma maior promoção”, conclui.
Ching Ping em grande plano
Foi perto da famosa Rua da Felicidade que se ergueu o Ching Ping. Uma sala de cinema onde ecoaram as vozes de cantores que conheceram a fama nos tempos áureos da ópera cantonense na região. Foi o então governador de Macau, António Sérgio de Sousa, que há cerca de 130 anos ergueu aquele templo da cultura, para convívio entre as artes do Ocidente e do Oriente: o cinema e a ópera, recorda o presidente da Associação de História de Macau, Chan Su Weng.
Naquele palco, os jornalistas do China Daily, a mando do líder chinês Sun Yat Sen, lutaram com arte contra o governo Qing. Ali reformaram a ópera que passou a ser cantada em cantonense e criaram os primeiros cenários a três dimensões. Um contacto com a cultura ocidental que se estendeu à música.
O Cinema Ching Ping, o primeiro em toda a Ásia, onde rodavam também muitos filmes, foi “o primeiro sítio oficial para as actuações de ópera cantonense”, recorda Chan, lamentando o abandono daquele espaço cultural. Muitos são os que reclamam a reabertura daquela casa histórica. A memória tem-se avivado e existem planos para recuperar o edifício e animar o espaço. “Macau poderia tornar-se o centro da ópera cantonense, porque teve essa tradição na altura da Guerra do Pacífico”, conclui.
O que a distingue das outras
É o toque ocidental que marca as diferenças entre a ópera cantonense e as mais de 300 óperas chinesas. A popularidade em Hong Kong e Macau deu-lhe essas tonalidades musicais, já que nela tocam instrumentos ocidentais, como o saxofone, permanecendo as cordas do erhu ao centro das suas orquestras. Foi no início dos anos 40, com as reformas na ópera cantonense que o famoso Ma Shizeng criou a secção ocidental nas orquestras. A ópera cantonense é muito melódica e de canto mais enlevado que a de Pequim, onde o huqin é um dos instrumentos mais importantes. Como na yue, onde as mulheres dominam os palcos, a cantonense aposta nos cenários e no sistema de iluminação, fruto da influência do cinema de Hong Kong. O magnífico guarda-roupa e a elaborada maquilhagem é o que a aproxima das suas congéneres.
Dois feitios, um só modelo
Mun (de cultura elevada)
Mais sofisticada, esta ópera tem uma conotação poética e referências culturais. Elegantes, os personagens executam movimentos graciosos.
Mo (artes marciais)
Muito ligado às artes marciais, este tipo de ópera trata sobretudo temas de guerra. As cenas envolvem frequentemente armas.
Cosmética e guarda-roupa
Cada papel corresponde a um tipo de maquilhagem. A mais interessante é a do bobo que o público identifica pela mancha de tinta branca no meio do rosto: A maquilhagem pode ainda indiciar doença, através de uma fina linha vermelha desenhada entre as sobrancelhas. Personalidades mais agressivas são normalmente identificáveis por uma seta desenhada na testa.
Os vestidos amarelos são próprios de imperadores, as cores vivas são típicas de príncipes e as discretas indicadas para intelectuais. Os bandidos vestem o preto. A cor também é importante na maquilhagem. Se o azul encaixa bem na face de um bandido, os tons metalizados denunciam a presença de um fantasma. Quando no rosto se cruzam muitas cores, a personalidade é mais complicada de decifrar.
Papéis principais
Wen Wu Sheng: jovem general
Xiao Sheng: jovem intelectual
Hua Dan: rapariga
Er Hua: papel secundário feminino
Chou Sheng: bobo
Wu Sheng: actor acrobata
Curiosidades
Escritor mais famoso: Tian Han
Cantor mais famoso: Mei Lan Fang (1894-1961)
Fundador da escola de artes de ópera chinesa (Pomar das Pereiras): Ming Huanguan (713 – 756 d.C.) da dinastia Tang (618 – 906)
Religião: tauismo
Deus da ópera chinesa: Waih Gong
Primeira companhia de ópera cantonense: Associação do Salão de Qionghua
Números que falam por si
Hong Kong:
1950 – 2 milhões de fãs
2005 – 300 mil fãs
Dados da Comissão do Conselho da Ópera Cantonense de Hong Kong