O mundo faz-de-conta da ópera cantonense arranca nos bastidores. Enquanto o carmim vai corando as faces dos actores, os lápis acentuam a simetria dos rostos e os olhos, já rasgados de si, espreguiçam-se até à testa. No avesso do palco desta arte tão nobre os actores parecem pierrôs. Há cores que gritam dos cabides para ser vestidas, caixas de ferramentas apinhadas de pós e cremes, madeixas em repouso num banho de resina. É nos bastidores que os membros da Associação de Ópera Chinesa Lai Chon de Macau e seus amigos pintam a tela de “Chun Jiao e Meng Yi”. É no próprio corpo que desenham o cenário desta peça de opera cantonense. A plateia vazia do velho Teatro Alegria deixa a descoberto o cenário minimalista de uma ópera mo, divertida e cheia de acção, com que a Lai Chon celebrou em Novembro, em Macau, o Dia da Ópera Cantonense. Uma festa regional que se estendeu no abraço a Hong Kong e a Cantão.
No fosso da orquestra afina-se a artilharia de percussões. Um chinfrim que tortura um ouvido menos habituado. Duas horas antes de se contar a história de “Chun Jiao e Meng Yi”, aquele é o único sinal de vida no teatro de uma das zonas mais chinesas de Macau. É dessa trincheira que espreitam os instrumentos ocidentais e orientais que nos anos 30 passaram a pontuar o festim da ópera cantonense. Nem o som adocicado do violoncelo atenua a estridência das percussões que comandam, de formas diferentes, os movimentos de cada personagem.
É por detrás do fosso da orquestra que se alinda a fantasia da ópera cantonense. Um mundo às avessas a despertar lentamente nos rostos, nos corpos dos actores. Aí se constrói o verdadeiro cenário desta forma de arte antiga que clama pela popularidade de outrora. Porque no palco o pano de fundo foi e sempre será minimalista, como no teatro pré-shakespeariano, o actor incorpora todo o intrincado mundo de artes que compõe a ópera chinesa. Como representações de palco, um actor de ópera chinesa mergulha fundo no personagem e exibe a caricatura das emoções que descobre. Já nas outras artes de representação, o objectivo é realizar o sentimento real numa imagem ficcionada.
Uma história de amor
Na cave do Teatro Alegria, o cenário da ópera é tecido em duas horas. Os espelhos reagem aos primeiros sinais; reflectem as caras pálidas onde é desenhado, a preceito, cada traço da nova personalidade, que varia em personagens tipificados. A elegante Kan Siu Peng, a mulher-soldado na ópera levada ao palco, é quem melhor conhece os segredos da cosmética da ópera chinesa. A si se abeiram os rostos de alguns dos 20 actores. Há quase 15 anos que se deixou apaixonar por esta arte, mas nunca aspirou à profissão. Nem Kan nem os outros actores amadores. “Não há que sonhar com o que não é possível”, afirma, encontrando eco nos seus amigos do palco. Ainda que as associações de Macau clamem por um maior apoio das entidades e do público, os actores parecem resignados ao amadorismo. Será mau sinal? Talvez não, porque esta é, acima de tudo, uma história de amor. Uma paixão que há mais de dois séculos enfeitiçou os palcos da ópera da região.
Muitos são reformados. Viveram a vida fascinados com o mundo da ópera chinesa. Sam, que já no colo dos pais sonhava ser actriz, estudou teatro ainda na adolescência. Subiu “muitas vezes ao palco”, mas não ao da arte chinesa mais nobre. Há quatro anos deu ouvidos ao coração que há tanto batia pela ópera cantonense. “Reformei-me e tive mais tempo para me dedicar”. A interpretar um papel masculino em “ Chun Jiao e Meng Yi”, Sam exibe com orgulho fotografias de outros vários eus: “Aqui sou eu no papel de mulher, nesta outra fotografia sou um homem”. É na pele deste que se sente melhor, “porque a estatura e a voz adequam-se mais a esse tipo de personagem”.
Com o lápis vermelho na mão, vai desenhando as linhas com que se cose o seu reflexo de palco. Retira cuidadosamente os cremes de uma caixa de ferramentas que lhe cobre o colo e dispõe-nos na alvura do rosto. Não perde com isso o fio à meada e conta como o curso de um ano na Associação Geral dos Operários de Macau lhe deu chão para “continuar a ensaiar”. Depois, fez-se membro da Lai Chon, “porque nesta companhia todos têm a oportunidade de ser protagonistas”. Algo único em Macau, sublinha. Há-de chegar o seu dia, como sucedeu a João Tang, o presidente da Lai Chon, que era Meng Yi na peça daquela noite. Com mais de 20 anos de ópera, aprendeu a estar no palco em dois anos na antiga Escola de Ópera Cantonense de Macau, cujas portas fecharam em 1991. Depois, “muitas associações foram criadas em Macau”, explica Tang, acreditando que estas, de alguma forma, colmataram a ausência de formação na região.
Amadores com muitas artes
Em “Chun Jiao e Meng Yi”, por ser uma ópera mo, um tema de guerra, a coreografia é mais elaborada. Que o diga Leong Kong Hong, um actor profissional vindo expressamente de Cantão para ensinar aos amadores da Lai Chon alguns passos inspirados nas artes marciais. Mais do que o levitar das mulheres, a passada larga e pesada dos homens e o andar de perna aberta do intelectual, que caracterizam a Ópera mun, este tipo exige outros saberes.
Com o arroz encarnado num recipiente em equilíbrio sobre a mão, Leong, um chinês que de tanto gesticular mais parece ter sangue latino, diz-se encantado com a cena de amadorismo de Macau. É a primeira vez que contracena com cantores da região. Orgulhoso, pega no cartaz que anuncia “Chun Jiao e Meng Yi” e aponta para o seu personagem, um belo militar de vestimenta branca e azul, com bolas de veludo branco e pérolas no capacete. É o Rei Bárbaro. “Na ópera são dez anos de ensaio para uma hora de espectáculo. E esta peça que hoje se apresenta não é fácil, pois exige controlo de voz, movimentos muito precisos e ainda o contacto com os olhos”, revela com o seu ar másculo e exuberante, que corta o ar de pierrô, composto por uma bata branca de corte tradicional chinês e uma toca preta na cabeça. É a base da sua máscara imponente.
De repente, um grito que vem do palco leva Leong dos espelhos. É tempo de fazer um último ensaio. Vários actores correm atrás de si e, no tablado, entre lanças e espadas, dão-se os últimos retoques. É Leong quem lidera as hostes. Nada complicado para quem é tão carismático e versado na ópera mo. Vai dando instruções aos actores, mas em caretas dá-se ao lamento: “Estou com barriga cheia de arroz e não é fácil movimentar-me em palco”. Como ele, muitos outros acabaram de jantar faltava pouco mais de uma hora para as cortinas se abrirem.
Bilhete do espectáculo
Dia 27 de Novembro de 2005 – 19h45
Teatro Alegria
Ópera mo “Chun Jiao e Meng Yi”
Associação de Ópera Chinesa Lai Chon de Macau
Quatro meses de ensaio na sede da associação no Largo do Senado
Custos de cerca de 60 mil patacas
40 pessoas: 20 actores, 9 técnicos e 11 músicos
A Lai Chon ao raio-x
Associação de Ópera Chinesa Lai Chon de Macau
Criada em 1991
15 membros com idades compreendidas entre os 40 e os 50 anos
Quota mensal de 30 patacas
Subsídio anual do Instituto Cultural de Macau varia entre as 25 e as 30 mil patacas
Mais de 80 espectáculos com uma internacionalização em Lisboa
Aspiração máxima: realizar mais espectáculos a nível profissional
Grande azáfama
No grande camarim continua a labuta. Os fatos vão passando pelo ferro de Lai Si, as agulhas do jovem Chan Ga Lok, de 13 anos, dão os últimos pontos nos capacetes e as madeixas, no repasto do banho de resina e ervas, pegam-se aos dedos de Tami. Terá de as pentear antes de as colar no rosto dos actores. “Há muito trabalho a fazer”, avisa, manobrando os longos cabelos. Muita daquela parafernália da ópera é comprada em Hong Kong e Cantão, onde laboram lojas especializadas, adianta Iun Son I, que pertence a outra associação de ópera cantonense e veio, com Tami e Lai, em auxílio da Lai Chon. Enquanto desvenda o mundo da ópera, vai passando a mão pelos trajes coloridos dispostos em muitos cabides: “A roupa dos soldados chineses é azul; os seus opositores vestem dourado e roxo”. O público que já enche a plateia tem de conhecer alguma da simbologia da ópera. Decifrar esses códigos é meio caminho andado para compreender a peça.
Não são apenas os tá pau (take away) junto às caixas de ferramentas apinhadas de pinturinhas nem o ensaio à última hora a marcar a diferença entre estes bastidores e os da ópera ocidental. Também o cenário minimalista, a música e o convite a tantas artes retrata a ópera chinesa. Até a forma de viver os minutos que precedem o espectáculo é distinta. Tem outra magia porque o amadorismo abençoa o camarim e aperta o laço de amizade entre os cantores que antes mesmo de cantarem “Chun Jiao e Meng Yi” contam nos bastidores a história de amor que há dois séculos enamorou Macau pela ópera.