A pressão dos acontecimentos em 1975, quando Timor-Leste é ocupado pela Indonésia, obriga os dirigentes timorenses a tomarem decisões rápidas, aprendendo com os erros e apurando decisões. O território, na altura formalmente uma colónia portuguesa, vivia nesse aspecto um anacronismo histórico.
Xanana Gusmão, “empurrado” pelas circunstâncias, passa a liderar a resistência. A dureza da luta de 24 anos contra a ocupação, com os seus avanços e recuos, traições e actos de abnegação do povo timorense, alimentam os sonhos do que seria feito depois da vitória, quando fossem independentes.
“No mato, ter a perspectiva de futuro exigiria termos capacidade de pensar nas coisas. E posso dizer que o que nos alimentava eram os sonhos”, acentua Xanana Gusmão, obrigado, como tantos outros, a superar-se diariamente. Mas para todos os resistentes, quer os que combatiam no interior do país, quer aqueles que defendiam a causa no exterior, o objectivo era o de construir um Estado e garantir uma vida digna aos timorenses.
Xanana Gusmão relembra que Timor-Leste é independente, somente há quatro anos, e que todos os dias são dias de aprendizagem, de reconstrução da memória institucional, de recuperação, com os meios disponíveis, das bases de um Estado de Direito, pesem as fragilidades de uma administração pública carente de quadros e de formação.
O processo de reedificação tem sido seguido bem de perto pela China, que desde 2000 tem vindo a fornecer a Timor-Leste ajuda gratuita diversa, cujo montante total ultrapassa já os dez milhões de dólares americanos. O apoio da China, que integra a missão de paz da Organização das Nações Unidas desde 2000, e mantém representação diplomática em Díli desde 2001, materializa-se em ajudas financeiras e materiais, na construção de infra-estruturas e na formação de quadros.
O futuro em Timor-Leste vai continuar a ser escrito diariamente, agora com o panorama das primeiras eleições, legislativas e presidenciais, organizadas pelos próprios timorenses, em 2007.
“A nossa perspectiva de futuro era sobreviver”
– Quando estava no mato, a dirigir a luta contra a ocupação indonésia, nunca pensou em vir a ser Presidente da República? Como antevia o seu futuro?
– Sabe, no mato, para dizer a verdade, nunca se pensa no futuro, porque se está exposto a qualquer momento a ser abatido. Eu tentei sempre separar-me da questão de ambicionar qualquer coisa. Assumi as responsabilidades por vontade própria, porque a situação o exigia, mas lembro-me que em 1981, quando estávamos a preparar a conferência (Nacional da FRETILIN – partido hoje no poder -, em que é criado o Conselho Nacional da Resistência Nacional e Xanana Gusmão é escolhido para comandante-em-chefe das FALINTIL – forças armadas da resistência timorense) os meus colegas distanciaram-se de mim. Não era um distanciamento ditado pela frieza, mas porque consideravam que, passando eu a ser o dirigente máximo da luta, não aceitavam sentar-se ao meu lado. Eu fiquei triste e disse-lhes: “Então?, acabem lá com isso, vamos continuar como até aqui, sem distâncias”. Mas essa questão de ser presidente surgiu ainda durante a guerra.
– Em que circunstâncias? O que foi que aconteceu e como geriu essa questão?
– Foi em 1987, depois de infligirmos várias derrotas, eles mudaram de táctica (as forças indonésias iniciaram o movimento de contra-guerrilha, armando antigos guerrilheiros capturados ou que se haviam rendido) e a partir daí sofremos também grandes desaires. Aí, porque tínhamos baixas todos os dias e perdíamos armas, gerou-se um sentimento de muita incerteza na mente dos soldados. Um dia recebo uma companhia e os soldados puseram-me frontalmente a questão: “Nós estamos a morrer e tu estás sempre a dizer que vamos ganhar um dia. Não será que nos estás a forçar a sofrer tanto, e a morrer, para depois vires a ser presidente?” Nessa ocasião jurei a eles, e pelos mortos, que nunca, nunca depois da guerra pretenderia qualquer cargo. Jurei-lhes que depois da guerra, o objectivo que comandava os nossos actos, tudo quanto estávamos a fazer, e que era um objectivo que o povo estava à espera que o ajudássemos a cumprir, nunca ocuparia qualquer cargo. Foi coisa que nunca me passou pela cabeça. Isso é que me fez vacilar muito e hoje sinto ainda o peso de não ter cumprido o juramento. Claro, as pessoas dizem que foi um juramento numa circunstância difícil. Mas foi um juramento com sentido e com sensibilidade. De qualquer forma, hoje e agora, em Março de 2006, quando toda a gente me ouve dizer que não me vou recandidatar e as eleições se aproximam, digo que já tomei a decisão. Já desvirtuei o meu juramento, mas para que seja coerente com os meus princípios, em 2007 não vou. Não vou! Não há mais possibilidade, senão fica sempre uma sensação de culpa, um peso moral e político pela vida fora.
– Antes de 2002, quando a comunidade internacional reconheceu a independência de Timor-Leste, e se encontrava ainda no mato, como é que antecipava o futuro do país?
– Sabe uma coisa? No mato, ter perspectivas de futuro exigiria termos capacidade de pensar nas coisas. E posso dizer que o que nos alimentava eram os sonhos. Sonhos que nos acalentavam e justificavam os sacrifícios. Se isso se pode considerar como perspectiva, a que tínhamos no mato era que depois da independência cada família teria uma casa e condições para viver com mais dignidade.
Ainda hoje, quando me encontro com os veteranos, eles manifestam o pesar de ainda não termos conseguido realizar esses sonhos. Eu digo-lhes que isto leva tempo. Este processo está a ser difícil, em termos de construção física e social do Estado. Mas eu acredito num futuro com condições. E elas serão suficientes para que tenhamos capacidade de ter um programa que possa garantir ao povo, ano após ano, que estamos a dar passos para atingir determinadas metas. Porque dinheiro não nos vai faltar.
– Costuma-se dizer que a paciência é uma característica dos asiáticos…
– E do povo timorense. Mas o nosso povo é também muito exigente. É difícil comparar os 24 anos de luta com a situação actual. É difícil, porque não se colocam, em termos reais, no mesmo plano. Mas eu acredito que estamos num processo democrático, se a sociedade, sobretudo a juventude, começar também a participar, a ser envolvida no processo. Creio que não será fácil, porque o nosso povo não fica satisfeito só com promessas, mas se lhes comunicarmos um programa realista o povo verá que isso nos levará na direcção certa.
“Macau pode ter muito
interesse”
– E no que diz respeito à Ásia no seu todo?
– Tenho participado em vários fóruns em que se debate esse grande tema: a Ásia no futuro. E dentro da Ásia, a China, como potência económica que está a crescer muito e que vai mudar o xadrez das influências económicas. É claro, nós tentamos colocar-nos aqui ainda com muita humildade, na medida em que estamos a começar. Mas temos perspectivas e por isso temos que saber orientar o nosso pensamento no conjunto da ASEAN e, depois, da Ásia. Estamos a trabalhar para entrar na ASEAN e procurando perceber como podemos participar na organização e qual é a mais-valia de Timor-Leste para a ASEAN. Toda a gente fala em ganhar, é a chamada ‘win-win solution’. Temos de perceber o que iremos ganhar e o que teremos de dar. Isto na ASEAN.
– Inserindo-se Timor-Leste na área geográfica da Ásia, como vê as relações com a China? E com Macau?
– E depois, num contexto maior, com a Ásia. Há dois anos, na última cimeira da ASEAN, discutiu-se o problema da política da organização em relação aos grandes parceiros: Índia, China e Japão. Debateu-se a questão de saber se os países membros da ASEAN deviam assumir políticas individuais ou uma estratégia colectiva. Uma e outra não favorecem os países menos desenvolvidos. Nesses fóruns comecei a ganhar a ideia de que mesmo com a Organização Mundial do Comércio – que define um padrão muito teórico das relações económicas entre os países –, eles dão sempre realce à cooperação bilateral, que dizem ser inevitável e fundamental para cada país. Aí estão a China e o Japão, embora mais a China, com quem temos de ter boas relações – a Índia fica mais longe. A China tem uma particularidade: Macau está a aparecer como ponto de ligação entre a China e os países de língua portuguesa. Acredito que, em termos de cooperação económica, Macau pode ser um centro com muito interesse para Timor-Leste. Vamos tentar acompanhar até que ponto Macau pode desempenhar esse papel. Eu acredito que pode. Considero, aliás, que a criação do Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa constitui um instrumento de trabalho para desenvolver as nossas relações.
– Macau tem diversificado os investimentos em Timor-Leste. A presença da Companhia de Electricidade de Macau (CEM) e o envolvimento da Fundação Oriente são exemplos dessa acção. Mais recentemente, a visita de Stanley Ho a Díli abriu portas à possibilidade de investimentos. Qual é a abertura de Timor-Leste nessa matéria?
– Com certeza que existe abertura. A vinda de Stanley Ho significa que há já uma vontade de investir. Oxalá se possa, não digo muito em breve, mas que se possa realizar. Nós estamos abertos (ao investimento externo) e estamos também interessados em que os investidores nos digam o que falta ainda fazer. Estamos abertos a ouvir o que temos de melhorar, a ouvir as suas sugestões. Temos que estar abertos para que os investidores venham e continuem a ter contactos com o nosso governo. Fala-se na possibilidade de Stanley Ho investir no sector do turismo e no seu envolvimento numa parceria (para a exploração dos recursos petrolíferos do Mar de Timor) com a GALP (Portugal), a Petrobras (Brasil) e a Petronas (Malásia). Seria fantástico!
“A lusofonia continua a ser
importante”
– Timor-Leste, neste canto do mundo, é um espaço de língua portuguesa. Até que ponto esta realidade é importante para o seu país?
– Continua a ser importante. A tese que sempre defendi foi a de que a presença portuguesa permitiu-nos sermos diferentes neste grande arquipélago de 270 milhões de habitantes que é a Indonésia. Nós somos menos de um milhão. Este facto torna-se crucial. É parte da nossa identidade e não nos devemos assustar com a vizinhança, que fala mais esta ou aquela língua, porque se nos assustássemos com a vizinhança o melhor seria falar bahasa indonésio.
– E quanto às relações com o restante espaço lusófono. Como pode este espaço marcar a diferença neste mundo global?
– O problema é um bocado a falta de atrevimento. Atrevimento no bom sentido e em vários aspectos. Se nos deixarmos ultrapassar pela tecnologia dos outros países, devemos ser muito atrevidos, mas sem ser malandros. O atrevimento tem de ser a coragem de, em cada país, em cada bloco, ou organização, saber chegar ao pé do último grito tecnológico, prover o próprio país desse conhecimento e da capacidade do uso dessa tecnologia. Cabo Verde soube explorar as suas potencialidades. Nós, como Angola, temos que saber explorar as nossas potencialidades. Mas se a nossa mentalidade fica muito atrasada em relação às novas tecnologias, ficamos muito atrasados e aí teremos de apostar na educação.
– No caso de Timor-Leste como seria essa aposta na educação?
– É começar a preparar agora um pequeno grupo de profissionais e técnicos para, daqui a 10 ou 20 anos, poderem saber acompanhar o desenvolvimento tecnológico. Teremos dinheiro (com as receitas do petróleo), mas é preciso aprender como o vamos utilizar. E a dependência continua. Temos que investir na inteligência humana, seleccionar essa juventude e dizer-lhe “vai para engenharia”, “vai para não sei quê”, porque a próxima etapa, dentro de 10 a 20 anos, vai ser uma etapa crucial para Timor-Leste. É preciso criar competências. Isto é o que nós não temos e precisamos de ter.
– Timor-Leste situa-se entre dois vizinhos poderosos, a Indonésia e a Austrália. Como é garantido o equilíbrio nesse relacionamento? É difícil?
– Não é fácil. Há o equilíbrio político, e neste aspecto, temos sido bem sucedidos. Se formos a falar em termos económicos não há equilíbrio. Há só escolhas. Mas no futuro, em termos de identidade, temos questões básicas, mesmo muito básicas, que teremos de resolver. Nós somos um povo pequeno, mas com muitos dialectos e também expressões culturais diferentes de etnia para etnia. Estamos a notar que o turismo pode ser fantástico quanto a receitas, mas se formos a pensar noutros mercados não podemos, por exemplo, competir com Bali. E não podemos competir com a Austrália, nem com as condições que Singapura ou Jacarta apresentam.
– O que é que pode ser feito nessa área?
– Podemos oferecer uma outra forma de turismo, em que as pessoas venham e não vejam um Timor-Leste demasiadamente homogéneo, mas com uma certa diversidade cultural. Este é o risco de sermos esmagados pelas duas culturas (indonésia e australiana). Em qualquer cerimónia os jovens apresentam uma dança. Veja a dança que os jovens apresentaram na Escola Portuguesa de Díli quando da visita do (então) Presidente da República Jorge Sampaio, e que chamaram de ‘dança do milhafre’. Eu conheço a dança do milhafre e não era aquilo. Tentam interpretar qualquer coisa e chamam a isso semi-tradicional. Já vi noutros sítios e pergunto: “Que correria é que vocês estão a fazer?” Respondem que é semi-tradicional, mas não é culpa dos jovens.
Tenho um projecto nessa área – mas como todos os projectos precisa de ser apoiado financeiramente – que é o de irmos às bases, ao povo, e perguntar-lhes como é que se dança isto, como é que é isto e aquilo… Penso que deve haver uma comissão que faça essa recolha e a preserve, para a colocar num estilo muito mais apresentável e autêntico. Isto é que pode manter o equilíbrio. Senão, se nós perdermos isto, a juventude pode cair no risco de ser absorvida pelas culturas dos nossos dois vizinhos. Dou-lhe um exemplo: as nossas músicas têm duas melodias, uma de coros de igreja e outra de música indonésia. Aí o equilíbrio, enquanto questão de identidade, já não é equilíbrio. Há é um desequilíbrio de assimilação. Isto pode ser um perigo.
– E quais são as outras alternativas? Será que o futuro vai remeter Timor-Leste para o papel de fornecedor de serviços?
– Não. O turismo vai ser uma das maiores fontes de divisas. Mas temos que trabalhar num turismo diferente. Não sonhemos em apresentar um turismo de cinco estrelas, porque já há em todo o lado, nem do género de Bali, porque já existe e está no sangue dos balineses. Não dá.
Nós podemos oferecer um turismo diferente, do género ambientalista e ecológico. Temos condições para apresentar coisas que possam atrair. Por exemplo: na cultura timorense os anos contam-se pela época das chuvas. É quando começa o novo ano, conhecido como ano da produção. Então, com as chuvas inicia-se um novo ano e com as festas que podem ser feitas, os turistas dirão: “Isto não é como em Bali, é diferente”.