A história social tem sido grandemente negligenciada no conjunto da produção historiográfica referente a Macau, a qual, no entanto, tem merecido inegável, substancial e significativa renovação nas últimas décadas. São, no entanto, escassos os estudos que nos elucidem sobre todo um emaranhado de histórias de família, de relacionamentos pessoais, económicos, políticos, sociais, religiosos e associativos, de problemáticas legais e outras, de encontros e desencontros culturais e civilizacionais, de estigmas e de preconceitos, que dêem corpo ao chavão da plurissecular convivência entre ocidentais, sobretudo portugueses, e chineses em Macau; que nos esclareçam sobre a realidade do seu cosmopolitismo e equacionem a contribuição das suas distintas comunidades para a construção de um espaço comum. Esse mesmo, de alguma forma único, e, por isso, merecedor da consagração agora obtida, ao ser reconhecido como património mundial. Mas, também, imprescindível para a compreensão da actual realidade de Macau, de Hong Kong e do Sul da China, regiões a que são cometidas funções específicas, ditadas pela optimização da especificidade que a história lhes trouxe, no contexto da unidade maior em que se integram, ou seja, a China dos nossos dias.
Se uma excepção existe que confirma a regra, ela tem precisamente o nome de Carl Thurman Smith. Pouco conhecido do universo académico português, Carl Smith tem vindo, paciente e discretamente, ao longo do seu quase meio século de residência em Hong Kong e de há cerca de três anos em Macau – a coleccionar elementos biográficos, genealogias, histórias de família, de companhias, de instituições e de locais, que ascendem aos muitos milhares de registos.
As cerca de 140 mil entradas respeitantes a Hong Kong estão hoje à consulta no Public Record Office de Hong Kong, que, a partir duma cópia dos microfilmes, efectuada em 1995 pela Genealogical Society of Utah, concluiu em 2001 o processo da respectiva digitalização e indexação, esta última acessível na Internet.
Os restantes materiais que compõem a colecção de Carl Smith estão já à guarda do Arquivo Histórico de Macau – os referentes à cidade – e, em breve, os repeitantes a Hong Kong e a outros locais integrarão o espólio da Asian Division da Biblioteca do Congresso norte-americano, desfecho que porá termo a uma preocupação que Carl consigo carrega há anos, e que fui podendo testemunhar ao longo de cerca de 15 anos de colaboração, alguma convivência, e relacionamento sempre amistoso.
Garantir a sua preservação, mas também a acessibilidade de todos ao trabalho de uma vida – desenvolvido a par da sua actividade missionária, como professor – que mereceu, no passado dia 30 de Outubro de 2005, o reconhecimento público de uma instituição da RAEM, ao ser-lhe atribuído o grau de Doutor Honoris Causa pelo Instituto Inter-Universitário de Macau. Cerca de dois anos antes, também o Centre of Asian Studies da Universidade de Hong Kong o havia feito seu Distinguished Fellow.
Reconhecimento merecido pelo indubitável contributo que Carl Smith vem prestando à História de Hong Kong, que de alguma forma revolucionou, ao trazer para o palco da História a memória do homem comum, das minorias, dos oprimidos e, até, dos marginais. Tornou-se, assim, responsável pelo surgimento de estudos que fizeram escola sobre a identidade das comunidades locais, e suas elites, especialmente as chinesas e euro-asiáticas. Contributo esse extensível à História de Macau e da região, a partir dos finais do Século XVIII, nos seus mais diversos campos: religioso, político, económico, social, jurídico, geográfico, urbanístico e arquitectónico.
Chineses cristãos
Chegado a Hong Kong em 1961 a fim de ministrar Teologia no Chung Chi Seminary – que mais tarde haveria de integrar a Chinese University of Hong Kong – foi chamado a preparar um curso sobre a História da Igreja Protestante na China, apercebendo-se então da enorme lacuna de que enfermavam os estudos existentes ao centrarem essa história em torno dos missionários, e sua actividade, omitindo a dos indivíduos por essa via convertidos.
Dedicou-se, a partir de então, aos estudo dos chineses cristãos de Hong Kong, sem negligenciar os chineses católicos de S. Lázaro de Macau e os ocidentais das mais distintas nacionalidades, as mui tsais e mulheres protegidas, os comerciantes e navegadores, artesãos, pescadores, escravos e marginais. E também ao das comunidades minoritárias, judias, muçulmanas, arménias e parses, frequentemente esquecidas pelos grandes manuais, não obstante o peso que tiveram no comércio internacional no Sul da China, a partir de meados do século XVIII e, nomeadamente, no desenvolvimento de Hong Kong e de Macau. É esse o campo a que Carl Smith, não obstante ter já ultrapassado os oitenta anos de idade, se tem vindo a dedicar recentemente, depois de ter aceite o repto que lhe foi lançado pelo Instituto Cultural da RAEM para prosseguir os seus estudos sobre Macau, processo a que me orgulho de estar de alguma forma ligada. Os resultados deste trabalho têm vindo a ser regularmente publicados na Revista de Cultura, na sua maioria em colaboração com Paul Van Dyke, especialista do comércio internacional na região de Cantão, no período que antecedeu a Guerra do Ópio, e das famílias dos mercadores chineses a ele associados, a quem coube proferir o elogio de Carl Smith por ocasião do seu doutoramento pelo Instituto Inter-Universitário de Macau.
Outros, de entre os cerca de setenta ensaios que produziu, muitos dos quais publicados no Journal of the Hong Kong Branch of the Royal Asiatic Society, encontram-se reunidos em dois volumes: A Sense of History. Studies in the Social and Urban History of Hong Kong, publicado em 1995 (Hong Kong Educational Publishing Co.), com uma versão em chinês datada de 1999 – e no qual se inclui um capítulo sobre os cristãos de S. Lázaro de Macau -, e Chinese Christians. Élites, middlemen, and the Church in Hong Kong, surgido em 1985 (Hong Kong/Oxford/New York, Oxford University Press) e reeditado em 2005. Da sua autoria ainda, e não citando as obras de pendor religioso ou metodológico, estas sobretudo dedicadas à genealogia, assinala-se o livro em co-autoria com H. G. Hollman, Hong Kong Going and Gone, publicado em 1980, em Hong Kong, pela Hong Kong Branch of the Royal Asiatic Society, associação de que foi vice-presidente entre 1976 e 2003, cargo que mantém a título honorário.
Carl Smith, que também leccionou História local na The University of Hong Kong entre 1975 e 1978 e integrou diversos órgãos consultivo de instituições científicas, culturais, editoriais e educacionais, viu o seu mérito reconhecido por diversas associações, sobretudo norte-americanas e de Hong Kong.
Para assinalar a passagem do 25º aniversário do seu restabelecimento, promoveu a Hong Kong Branch of the Royal Asiatic Society uma sessão de homenagem a Carl Smith, havendo, na ocasião, reeditado a sua já referida obra, Chinese Christians, Elites, Midlemen and the Church in Hon Kong, de há muito esgotada.
Persistência e dedicação
Nesse momento de reconhecimento público, testemunharam alguns dos muitos que, directa ou indirectamente, se consideram seus discípulos, nos quais se incluem os mais prestigiados historiadores de Hong Kong, e daqueles a quem, sempre de forma tão generosa quanto modesta, tem vindo a disponibilizar, quer como professor, consultor ou simples amigo, a sua muita informação e saber. São inúmeros os que tem encaminhado com o seu conselho e experiência, e, sobretudo, envolvido numa teia de relacionamento, comunicação e inter-ajuda de que ele é sem dúvida o pólo aglutinador, e que constitui um dos seus não menos valiosos legados.
Esse contributo comporta igualmente o fruto do trabalho que durante anos a fio despendeu na ordenação e sistematização da informação recolhida em arquivos de Hong Kong e de Macau, mas também no Reino Unido, Suiça, Alemanha, Estados Unidos da América, manuseando registos eclesiásticos, de propriedade, fiscais, judiciais, testamentos, mas também copiando lápides tumulares e outras inscrições – por exemplo, as encontradas em templos e memoriais – para além do trabalho elaborado sobre a Imprensa, obras de referência, revistas e demais bibliografia.
Desta forma se foi envolvendo física, emocional e afectivamente, criando raízes na região e desligando-se cada vez mais da distante Dayton, em Ohio, nos Estados Unidos da América, onde nasceu em 1918; da DePauw University de Greencastle, no Indiana, onde obteve o seu B.A. em Arts, em 1940, e do Union Theological Seminary de Nova York, onde finalizou o seu M.A. em Divinity, em 1943, embora sem obter o respectivo grau académico. Recusou-se a alterar a dissertação e a remeter para apêndice os dados individuais que sustentavam esse seu estudo, de 270 páginas, intitulado Scholars and scholars: English Language Education in the China Mission in the First Half of the Neineetheeth Century and Its Results, decisão que, diz, nunca lhe provocou o menor arrependimento e não o impediu de regressar ao mesmo estabelecimento de ensino onde, em 1965, concluíu os seus estudos de pós-graduação. Foi, também em 1943, ordenado pastor da Evangelical and Reformed Church (actualmente the United Church of Christ), nos mesmos Estados Unidos da América onde exerceu o ministério em Rochester (Nova Iorque), entre 1943 e 1945, e Filadélfia, de 1945 a 1960.
Carl Smith é uma lição de amor, de dedicação, de pertinência e de alegria de viver, na qual encontra razão e força para contrariar os revezes da própria vida. Só alguém com a sua nobreza de carácter, a sua delicadeza e força de vontade seria capaz de formar a sua assistente- que de há quase duas décadas o acompanha — para que pudesse ser “os seus olhos”, quando infelizmente a natureza lhe cerceou a boa visão. E é com um sorriso jovial e com uma boa gargalhada de garoto traquina que no-lo confidencia.
*Investigadora-Coordenadora do Instituto Ricci de Macau