Tem sido uma questão recorrente em Macau, abordada por quase tudo o que é dirigente ou opinion maker, mas ninguém a terá colocado de forma mais expressiva que o então Governador Carlos Melancia quando afirmou que “os portugueses são autofágicos”.
Na altura, Carlos Melancia estava em apuros devido a uma série de “escândalos” noticiados pelos jornais portugueses que conduziriam à sua saída de Santa Sancha, ainda que o tempo demonstrasse não terem a importância que lhes era atribuída. A “autofagia” dos portugueses (incluindo alguns em Macau que “alimentaram” os denominados escândalos) essa ficou provada, pois o território perdeu injustamente um dos governadores com maior sentido estratégico, ainda que algo naif quanto ao exercício do poder nesta zona do Globo.
Como ele, antes e depois, acompanhei o modo como excelentes e devotados dirigentes e técnicos foram “escovados”, alegadamente devido a “meias verdades” ou “inverdades” absolutas sobre a sua actuação, a que a imprensa local e em Portugal deu à estampa, em sucessivas campanhas que objectivamente fragilizaram a presença portuguesa.
Como jornalista residente há quase um quarto de século, não fiquei imune a todas estas “campanhas”, e se já fiz público mea culpa de certas situações em que “embarquei”, nem por isso convivo comigo mais facilmente quando penso na ingenuidade com que me deixei levar, apesar de toda a experiência acumulada em anos de jornalismo em Lisboa.
Passei a ter muito mais cuidado, o que me levou a perder “fontes” que se mostraram sem credibilidade, e, em última análise, a fazer um jornal “sem graça”, como perorava um assessor governamental até ficar irritado com um jornal “com graça” quando uma pequena local o envolveu de forma especulativa…
Passei também, e mesmo contra o “jornalisticamente correcto” (nos dias de hoje a tendência é só noticiar “o homem que mordeu o cão”), a equilibrar as notícias das pequenas “misérias humanas” que existem em todas as sociedades, com os pontos positivos do ser e estar português no mundo, em especial nesta histórica relação com a Ásia, que tanto nos engrandece.
E porque não se trata de uma mera estratégia, mas de uma convicção profunda, pessoal e profissional, não deverá surpreender que fique triste com as lacunas e problemas dessa relação e exulte com os êxitos que sevão conseguindo.
Por isso, foi com grande satisfação que nas últimas semanas tive oportunidade de reforçar a ideia do muito que se está a fazer em Portugal, sobre as relações entre o nosso país e a China, com Macau de permeio.
A nível económico, e através das “bases” lançadas pelo Fórum criado pela República Popular da China, para mais fácil contacto com os países lusófonos, está em curso um vultoso conjunto de acções concretas, que envolve as autoridades portuguesas responsáveis pela promoção, mas também os empresários dos mais diversos sectores. Porque “o segredo é a alma do negócio”, sabe-se pouco dos negócios concretos realizados e em projecto, mas o ambiente generalizado de optimismo, entre empresários chineses, portugueses e dos países lusófonos não engana ninguém. Pela primeira vez, ao longo das últimas décadas é possível perceber que se passou das palavras aos actos.
Também a nível cultural, a intelligentsia portuguesa revela nova mentalidade. Apesar da escassez dos recursos financeiros, as universidades, institutos, fundações e outras instituições ligadas ao estudo das relações Portugal-Ásia estão bastante mais activos do que se poderia concluir pela leitura dos “media”.
Semanalmente, há palestras, debates e mesmo lançamentos de novas publicações sobre a China, Macau ou as relações entre portugueses e chineses, umas ainda na perspectiva histórica onde tanto há para estudar em especial através da conjugação de fontes portuguesas e chinesas, mas muitas também visando objectivos mais dinâmicos, que ajudam à melhor compreensão da actual situação das duas sociedades e a previsível evolução dos seus diferentes sectores.
É trabalho, em quantidade e qualidade, que nos deveria levar a reflectir sobre os assuntos que chamamos para as primeiras páginas…
* Director do “Jornal Tribuna de Macau”