Paladino do português como língua universal

Malaca Casteleiro tem uma longa carreira a lutar para que a língua portuguesa tenha as mesma regras em qualquer parte do mundo: universo de 200 milhões de falantes

 

 

 

 

João Malaca Casteleiro é um linguista ilustre e um académico de longa e brilhante carreira, que se distinguiu na tentativa de que a língua portuguesa se afirmasse no mundo como espaço de partilha cultural e instrumento de trabalho comum aos cinco continentes. Ainda a palavra “globalização” não tinha entrado no léxico universal, ainda a China não se tinha transformado numa potência económica com interesses económicos no Brasil e em Angola, e já Malaca Casteleiro trabalhava em diversas frentes para que o português tivesse as mesmas regras nos oito países de expressão portuguesa, com os seus 200 milhões de falantes.

João Malaca Casteleiro licenciou-se em Filologia Românica (Português/Francês) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1960, e doutorou-se em 1979 pela mesma Faculdade, com uma dissertação sobre sintaxe da língua portuguesa. É professor catedrático na sua faculdade desde 1981 e professor convidado na Universidade da Beira Interior. É ainda membro da Academia das Ciências de Lisboa desde 1979 e, desde há muitos anos, director do seu Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa.

Malaca Casteleiro colabora também com a Universidade de Macau desde 1987; ou seja, desde os tempos da sua antecessora, Universidade da Ásia Oriental, tendo desde então dirigido várias teses de mestrado e de doutoramento. Em 2004 recebeu dela o grau de Doutor em Letras Honoris Causa, tendo o seu elogio académico sido proferido pela professora Maria Antónia Espadinha.

Em 1990, quando Portugal assinou o Acordo Ortográfico com os outros países lusófonos, Malaca Casteleiro assumiu com naturalidade a liderança da equipa técnica do seu país. Depois, no final dos anos 90, coordenou o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, editado em 2001 pela Academia das Ciências de Lisboa, que ficou justamente conhecido por “Dicionário da Academia”. Sobre esse trabalho, disse o Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio: “É um marco como instrumento de trabalho e de estudo para o mundo lusófono. De facto, o dicionário acolhe, actualiza e projecta o estado actual da investigação e dos nossos conhecimentos linguísticos, com recursos às novas tecnologias, numa perspectiva de futuro e de abertura a todo o universo lusófono”.

João Malaca Casteleiro foi agraciado pelo governo francês com o grau de Cavaleiro da Ordem das Palmas Académicas em 4 de Julho de 1986. Mais tarde, em 26 de Abril de 2001, Jorge Sampaio impôs-lhe a comenda de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

 

Quinze anos de Acordo Ortográfico

 

Cumpriram-se no passado dia 16 de Dezembro 15 anos da assinatura do Acordo Ortográfico entre os membros da comunidade de países de língua oficial portuguesa. O acordo visava a unificação da língua portuguesa nos países lusófonos e, quando anos mais tarde o trabalho técnico ficou concluído, propuseram-se  alterações em 2600 palavras, pondo fim à existência de duas ortografias oficiais: a lusitana e a brasileira.

Quando no início dos anos 90 o Acordo foi colocado à discussão, a contestação foi muito viva. Em Portugal chegou mesmo a organizar-se o “Movimento Contra o Acordo Ortográfico”, congregando centenas de universitários, políticos e empresários. Fixou-se o dia 1 de Janeiro de 1994 como a data da sua aplicação nos países signatários, mas Portugal, Brasil e Cabo Verde foram os únicos a ratificar o projecto. E, mesmo nesses países,  o acordo tem estado, desde então, em banho-maria.

Na vida real as consequências também foram nenhumas. Quinze anos depois, os portugueses continuam a escrever “óptimo” e não “ótimo”, “factura” e não “fatura”. Ora, uma das mudanças mais radicais previstas no projecto era precisamente a eliminação das consoantes mudas, “abrasileirando” o vocabulário português.

O último impulso ao Acordo Ortográfico foi dado na última Cimeira da CPLP em S. Tomé e Príncipe, em Julho de 2004, na qual os governos decidiram que bastaria a ratificação do Acordo por três signatários para entrar em vigor nos respectivos países, prescindindo da sua aplicação unânime nas oito nações aderentes. Mas esta alteração ou protocolo modificativo do documento original ainda não foi ratificada.

Em 16 de Dezembro último, o jornal português “Público” assinalou os 15 anos do Acordo e, nessa edição, uma assessora da actual ministra portuguesa da Cultura, Maria do Céu Novais, declarava: “Cabo Verde e Brasil estão em processo de ratificação” e  “em Portugal existe disponibilidade para ratificar”. A hipótese mais provável – mas não definitiva – será a de impor “uma dilação no tempo para a entrada em vigor do Acordo Ortográfico em Portugal”. Mas “nada disto tem prazos”, ressalvou.

A referida assessora adianta também que, antes de se concretizar a ratificação, o Governo português pretende relançar o debate público em torno da adequação e da validade do Acordo. O “Público” apurou entretanto que o Instituto Camões está a coligir uma série de pareceres sobre a aplicação do protocolo modificativo. Porém, a presidente do instituto, Simonetta Luz Afonso, não confirmou essas diligências.

 

“Português unificado seria uma grande vantagem”

 

O Governo português anunciou em Dezembro que irá pedir o adiamento da aplicação do Acordo Ortográfico, lançado há 15 anos. Pensa que esse adiamento compromete o uso do português como instrumento importante num mundo cada vez mais global?

– O Acordo Ortográfico foi celebrado em 16 de Dezembro de 1990 pelos ministros da Cultura dos sete países lusófonos (aos quais mais tarde se juntou Timor Leste). Na altura previa-se que ele entraria em vigor em 1 de Janeiro de 1994. O problema é que tinha que ser ratificado pelos parlamentos dos diversos países – e foi só ratificado pelos parlamentos de Portugal, do Brasil e de Cabo Verde. Por esse motivo nunca chegou a entrar a vigor.

Entretanto, na Cimeira da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) de Julho de 2004, em S. Tomé e Príncipe, decidiu-se prescindir da aplicação unânime nas oito nações aderentes – bastando a ratificação de três signatários para entrar em vigor nos respectivos países.

– Foi nessa Cimeira que Timor se associou. O Acordo Ortográfico tinha um objectivo fundamental: promover a unidade, não apenas gráfica, da língua escrita para, desse modo, contribuir para uma maior difusão do português como grande língua de projecção internacional. Portanto, esses objectivos estão em grande medida prejudicados com estes adiamentos.

Acha que fez sentido aprovar condições para uma aplicação não unânime? O Acordo faz sentido sem unanimidade?

– Acho que essa não é a perspectiva mais correcta. Nessa altura, na Academia das Ciências de Lisboa, fomos consultados e dissemos que a perspectiva do acordo era a totalidade dos países aderirem. Faria muito mais sentido que fossem todos! Eu creio que a ideia em S. Tomé foi a de criar um “motor”: três países aplicavam e os outros iriam atrás, por inércia ou por vontade explícita. Pensou-se: não faz sentido que um vasto espaço de duzentos e tal milhões de falantes do português não tenha a mesma ortografia.

– Mas um dos problemas é, precisamente, o do Acordo Ortográfico a que se chegou estar longe de obter consenso. Mais de uma década depois, os portugueses continuam a escrever “óptimo” e não “ótimo”, “factura” e não “fatura” – ou seja: não abrasileiraram a sua ortografia.

– Bom, nós somos regidos pelo chamada convenção ortográfica luso-brasileira de 1945 – com as alterações que foram introduzidas em Portugal por um decreto-lei de 1973, na sequência de um outro no Brasil. Portanto, essas são as ortografias que estão oficialmente consagradas… E, neste caso, não estando em vigor o novo Acordo, estar a aplicar alguns dos seus aspectos era complicado.

Quais são as vantagens de se escrever exactamente da mesma maneira em África ou em Timor?

– É mais simples! É essa a principal vantagem da unificação gráfica da língua portuguesa. Não é salutar para o ensino e a aprendizagem do português no estrangeiro – ou do ponto de vista da utilização do português como língua oficial de certas instituições internacionais – que haja a necessidade de optar entre duas ortografias: a brasileira ou a portuguesa. Haver uma ortografia unificada tem enormes vantagens do ponto de vista da projecção da língua no plano internacional. Do ponto de vista interno não há grande problema em se escrever “óptimo” sem “p”, mas na difusão da língua ou no envio de livros de uns países para os outros, cria-se uma enorme barreira. Por exemplo: se for um aluno do ensino básico, então, é muito complicado – dificilmente consegue passar de uma norma gráfica para outra. É por isso que os livros brasileiros são reeditados em Portugal, adaptados, e vice-versa, às vezes já com alterações do ponto de vista sintáctico, que implica com a compreensão dos textos.

Continua, portanto, um entusiasta do acordo?

– Na minha perspectiva havia muita vantagem em que houvesse uma ortografia tanto quanto possível unificada. E seria muito salutar que fosse adoptada por todos os oito países ao mesmo tempo, também no sentido de evitar, e contrariar, uma certa deriva ortográfica: em alguns países, como Angola, há uma tendência para afirmar o nacionalismo e a independência escrevendo palavras de um modo ‘próprio’. Ora, isso não faz sentido: não é pela ortografia que se manifesta a identidade de um país! Essa manifesta-se através do léxico: palavras usadas no português falado e escrito mas que são provenientes das línguas nacionais.

– Faltou ao Governo português capacidade política para suster essa deriva?

– Eu creio que sim! Repare: o Acordo de 1990 foi uma segunda tentativa de unificação da ortografia, depois de uma iniciativa do Brasil, em 1986, que tinha um carácter ainda mais unificador: suprimiam-se os acentos de palavras esdrúxulas como   ‘género’ ou ‘antónimo’, em que havia acento circunflexo no Brasil e agudo em Portugal: suprimia-se como forma de unificação. Como houve em Portugal uma grande reacção a essa proposta, o Governo português tomou a iniciativa de propor uma segunda versão, menos unificadora, em 1990. Portanto, a ‘bola’ ficou do lado português…

– Que não a jogou…

– Promulgar um Acordo Ortográfico, implantá-lo, é um acto de soberania – é um acto político. Portanto, têm de ser os políticos a levar por diante a sua implantação – ouvindo, naturalmente, os especialistas da área: neste caso a bola ficou do lado de Portugal, que não desenvolveu diligências, nomeadamente diplomáticas, que levassem à ratificação do Acordo.

– Tem alguma explicação para isso?

– É devido, com certeza, às constantes mudanças de governo e, por consequência, das estratégias políticas que com elas vão mudando. Mas, quanto ao acordo, houve ainda uma segunda razão: a existência de guerra em vários países africanos, como Angola e Moçambique e, mais tarde, a própria Guiné-Bissau. Pelo contrário, o Brasil esteve sempre muito mais interessado na implantação de um acordo: em 1996-97 procurou, através da Academia Brasileira de Letras, que o Acordo fosse entrando em prática mesmo só com três países.

Em 2000 foi publicado o Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, conhecido como Dicionário da Academia. Como seu coordenador, quando é que pensa que será chegada a altura de fazer uma primeira revisão?

– Estamos já a trabalhar numa segunda edição. Vai ser uma edição maior, com mais entradas lexicais. Prevemos que seja em três volumes, com mais vinte mil entradas. O primeiro teve 70 mil; nesta segunda edição irá passar as 90 mil. Mas, entretanto, trabalhámos para um dicionário mais destinado às escolas, que está no prelo. Um dicionário num volume só, com 53 mil entradas lexicais. É mais um dicionário de aprendizagem, com uma finalidade mais pedagógica.

Para quando a segunda edição do Dicionário da Academia?

– Penso que será possível dentro de, o mais tardar, dois anos e meio, três anos. Para além de eu trabalhar com uma equipa pequena e há uma outra limitação: o financiamento. É necessário dizer que este Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea é uma trilogia que compreende um Dicionário de Língua portuguesa Medieval (séculos XII a XV), que está em curso com outra equipa, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Em Setembro de 2008 espero que o dicionário esteja concluído. O outro elemento da trilogia é o dicionário da Língua Portuguesa Clássica (séculos XVI a XVIII). A segunda edição do Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea já abrangerá, para além dos séculos XIX e XX, este início do século XXI.

 

“Macau superou as melhores expectativas”

 

 Como é que avalia o trabalho que está a ser feito em Macau para a preservação e funcionalidade da língua portuguesa?

– Eu acho que Macau superou as melhores expectativas que havia aquando da transição para a administração chinesa. Nós imaginávamos que o português ficaria muito mais reduzido, que haveria menos interesse na sua aprendizagem. Mas verificou-se exactamente o contrário: eu estive em Macau em Novembro passado e verifiquei, com muita satisfação, a grande procura de aprendizagem, quer na Universidade de Macau, quer no Instituto Politécnico de Macau, quer no Instituto Português do Oriente (IPOR), quer na Escola Portuguesa de Macau.

– Há grande procura?

– Há e estende-se à restante China: temos cinco universidades chinesas, com preponderância para as de Pequim, Xangai e Cantão, em que há departamentos de português com muito mais procura de alunos para aprender português do que o número de inscrições disponíveis.

Porque é que há tanto interesse pelo português?

– Por razões de natureza política e de natureza económica. A China está numa fase de expansão imensa, com interesses nos países de expressão portuguesa como Brasil, Moçambique, Angola… Portanto, todas as pessoas que acabam a licenciatura em português têm imediatamente saídas profissionais no domínio diplomático, económico ou mediático. Em Macau, então, essa procura é claríssima.

O que é falta para aproximar a oferta a essa procura?

– Um maior número de professores, recrutados a partir de Portugal ou de Macau, que tem recursos financeiros de sobra para promover o português, tal como tem feito. Até hoje, boa parte da promoção tem sido feita por autoridades chinesas. Por exemplo, o presidente do Instituto Politécnico de Macau foi nosso aluno, por volta de 1982, na Faculdade de Letras de Lisboa. É de Pequim e é um dos principais prosélitos da promoção do português em Macau, com ligações magníficas ao resto do país. Tem programas de acolhimento de estudantes que estão a tirar a licenciatura em universidades chinesas e que passam um ano de estudos em Macau, com processos de equivalência perfeitamente assumidos. A Universidade de Macau também faz isso. E o IPOR também tem muita procura.

– Como é que se pode tornar esse movimento ainda mais dinâmico?

– Com a abertura de mais cursos, com mais professores. Mas neste momento o Instituto Politécnico está, por exemplo, muito empenhado em preservar a qualidade do ensino. E, por vezes, a qualidade é incompatível com a quantidade.