De facto, nos actuais estudos sobre imigração em Portugal, não é possível localizar mais do que breves referências a este já longínquo e muito esquecido ciclo migratório, verificado genericamente a partir do início do século XX, período em que se deram profundas mudanças na organização política e social da China e de Portugal – o fim das monarquias e o estabelecimento das repúblicas.
A memória das nossas fontes vivas não refere factos anteriores aos anos vinte do século passado. Segundo elas, já então Moçambique, onde a comunidade chinesa era mais significativa, seria ponto de partida de chineses para Portugal. Porém, como se sabe, vindos de diversas regiões da China, circulavam chineses já por diferentes países da Europa, sem autorização de trabalho, nem de residência, até conseguirem fixar-se em alguns deles. E uma ínfima parte desses pioneiros terá acabado por se estabelecer em Portugal. Entretanto, um outro também pequeno número veio directamente de Macau, na sequência de ligações matrimoniais entre militares portugueses e mulheres chinesas daquele território, bem ao jeito das malhas que aquele tempo tecia.
A história de Olga Maria Lam Hing enquadra-se neste último caso e, nesse contexto, é o ponto de partida e referência central nesta breve crónica dos laços que se apertam e desapertam ao sabor do fluxo de vida.
De Lam Pui Yi a Olga Maria Lam Hing
Nascida em Macau em 1923, Olga começou por chamar-se Lam Pui Yi e guarda da infância recordações de uma vida relativamente confortável, membro de família chinesa, logo, muito distante dos hábitos que caracterizavam a comunidade portuguesa em Macau. Mas o pai era agente da Polícia de Segurança Pública e, por isso, tinha contacto frequente com portugueses, pelo menos ao nível profissional.
Se a infância e a adolescência foram vividas em total sintonia com os padrões de conduta próprios da sociedade chinesa de Macau, já os tempos de juventude vieram propiciar novos contactos e ambições…
Com praticamente todo o Extremo Oriente mergulhado na imensa turbulência provocada pelo inicio da Segunda Grande Guerra, foi por pouco tempo que Macau escapou às consequências da agitação que abalou o planeta.
Foi nesse contexto que em 1939 desembarcou no enclave um anónimo cidadão português, de nome Alfredo Rodrigues, para uma comissão de serviço de sete anos como militar do exército português. Sobre a vida de Alfredo Rodrigues em Macau nada mais se sabe. Apenas a poderemos imaginar passada entre a curiosidade por uma sociedade bem diferente da portuguesa e as obrigações militares, até 1942, ano em que o militar português e a jovem chinesa Lam Pui Yi foram apresentados por uma amiga comum. Tinha ela então quase 20 anos de idade – e a sua vida mudou de rumo.
Apesar de todas as resistências familiares, a jovem chinesa acabaria, pouco tempo depois, por ir viver com Alfredo para uma casa situada algures junto ao actual Mercado Vermelho. Ficou grávida nesse mesmo ano. E começava a familiarizar-se com o idioma de Camões.
Ao filho nascido em 1943 foi dado o nome de Armando, mas só a 25 de Maio do ano seguinte se deu a dupla conversão da jovem mãe, na Igreja Paroquial de Santo António, onde tiveram lugar as cerimónias de baptismo de Lam Pui Yi – que recebeu o nome de Olga Maria Lam – e a do seu casamento com Alfredo Rodrigues, já então seu companheiro em regime de união de facto, como hoje em dia se diz. Foi oficiante o padre Manuel Pinto Basaloco e o assento de casamento fala em “chinas gentios”, ao referir-se às ligações familiares da noiva.
A partir desse ano, Macau entraria em contagem decrescente como local de residência da jovem Olga e seu marido. Acabada a Guerra do Pacífico, em 1946, teve início uma nova fase da História da China, com a aliás não menos inquietante guerra civil entre nacionalistas e comunistas.
Foi assim que, para o jovem casal luso-chinês, a vinda para Portugal surgiu no horizonte como a melhor alternativa, uma vez que estava a chegar ao fim a comissão de serviço de Alfredo Rodrigues e o desempenho de outras funções não parecia concretizável naquela conjuntura.
Outros ramos da árvore
Angelina Chai terá sido das primeiras pessoas de etnia chinesa a nascerem em Portugal, mais exactamente no Porto, em 1928. Os pais escolheram Portugal como destino no início dos anos vinte. E hoje, ao cabo de 78 anos de vida, Angelina já tem alguma dificuldade em reconstituir o puzzle da vida dos seus ascendentes.
Embora perdidas no tempo as razões da opção dos pais de Angelina Chai pela cidade do Porto, pode-se ter como certo que a escolha teve por fundamento essa constante busca de melhores condições de vida, eloquentemente confirmada, aliás, pelas suas memórias de infância, que reconstituem sem hesitar o quadro das actividades a que os seus familiares se dedicavam: a venda ambulante de bijuterias, começada no Porto e que veio a ter continuidade em Lisboa, a partir de 1937, tinha Angelina já nove anos de idade.
Apesar de ter nascido em Portugal, Angelina viveu sempre a condição de membro de uma família exclusivamente chinesa, cujos laços étnico-culturais e de subsistência se prolongaram ainda pelo casamento com Yuan Wen Chai e nos cinco filhos que tiveram.
As gravatas do sucesso
Yuan Wen Chai, nascido nos arredores de Xangai em 1911, residia em Lisboa desde 1935. Antes vivera alguns anos de atribulações várias pela Europa, em conjunto com o seu irmão Yuan Y Hing, nascido em 1904.
De facto, os irmãos Yuan emigraram originalmente para a Holanda, no início da década de 30, mas Y Hing esteve detido nesse país por permanência ilegal, o que levou ambos até Itália. Mas aí também não se conseguiram fixar e Portugal foi o destino seguinte… Tal como a grande maioria dos imigrantes chineses em Portugal, naquela época, os irmãos Yuan encontraram nas dificuldades económicas que então vivam, bem como no contexto social e político que os desagradava, a motivação fundamental para emigrarem.
Na década seguinte, Chiang Kai Chek viria a gozar das boas simpatias do governo de Lisboa, circunstância que veio a ditar a instalação na capital portuguesa de um consulado de Taiwan, que acabaria por exercer significativa influência entre a reduzida comunidade chinesa que gradualmente se ia instalando em Portugal.
As boas relações de amizade que os irmãos Yuan estabeleceram com o cônsul viriam a revelar-se proveitosas e Portugal, como país de acolhimento, viria a compensá-los — afinal acabariam por prosperar de forma imparável em Lisboa!
Destinos cruzados em Lisboa
Quando, uns anos depois, em 1946, Olga Lam tomou a decisão de embarcar rumo a Portugal, os negócios dos irmãos Yuan já prosperavam e a venda ambulante das gravatas já dera origem a um estabelecimento comercial em plena baixa de Lisboa, na Travessa da Madalena.
Claro que a jovem Olga Lam desconhecia tais factos, nem poderia imaginar o quanto isso se tornaria importante na sua vida. A cansativa viagem marítima, de 57 dias, fora mais um obstáculo posto no caminho das incertezas do futuro, amenizadas talvez pela companhia do marido e do filho e pelo desejo de ir ao encontro de uma vida melhor.
Mas eis que, digamos assim, o militar fez sair “o tiro pela culatra”, acontecendo o impensável, apenas sete meses depois da chegada: Alfredo abandonou a esposa e o filho! Olga tinha 23 anos. O filho Armando contava somente três.
Sozinha e com o filho para cuidar, foi o desespero que levou Olga Lam, portuguesa de etnia chinesa, natural de Macau e a viver em Lisboa, a socorrer-se do Consulado de Taiwan, na altura a única instituição em Portugal que tratava de interesses chineses, uma vez que o regime de Salazar não tinha relações diplomáticas com a China. Apesar de não lhe financiarem a viagem de regresso a Macau, hipótese que chegou a ponderar, prontificaram-se a conceder-lhe apoio para alimentação e pagamento do quarto que alugou na Rua Castilho.
Pouco depois, Olga conseguiu emprego numa fábrica de conservas no Seixal, onde esteve cerca de três meses, juntamente com outras duas compatriotas.
E a verdade é que foi ainda por iniciativa do cônsul, de quem o então já empresário do negócio das gravatas Yuan Y Hing (que a partir de certa altura passou a apresentar-se como “Juang”, por semelhança fonética ao português João) era amigo chegado, que Olga Lam, dois ou três meses depois, mudou radicalmente a sua situação: decorria o ano de 1947 e o negócio das gravatas prosperava de tal maneira que Juang teve necessidade de contratar mais empregados. De facto, o volume das encomendas era tal que Yuan não tinha mãos para medir tantas gravatas…
Juntamente com outras três chinesas, Olga foi candidata a empregada de balcão na loja de gravatas da Travessa da Madalena e Juang Y Hing não hesitou. Foi mesmo decisão à primeira vista: optou pela jovem Olga, que imediatamente se mudou com o filho para casa de Wen Chai, irmão do novo patrão e da cunhada sino-portuguesa Angelina, nas proximidades da Sé de Lisboa.
Olga aproveitou bem a oportunidade que estes novos conhecimentos e um salário substancialmente aumentado (de doze escudos por semana para quase quatro vezes mais) lhe proporcionaram. E estreitaram-se os laços de trabalho e afectividade entre Olga Lam e o seu patrão Juang Y Hing…
Por isso, dessa vez aconteceu o desejado: Olga casou com Juang em 1954, antecipadamente divorciada de Alfredo, como quem encerra um capítulo e inicia outro, num casamento que inaugurou tempos de estabilidade laboriosa e tranquilizadora respeitabilidade.
Como as exigências do negócio não paravam de crescer, nesse mesmo ano o casal mudou-se para um 3º andar na Praça da Figueira, instalações que passaram a albergar quatro diferentes funções, em simultâneo: a de residência, a de atelier de produção, a de posto de venda e a de armazém de gravatas.
Novelo transcultural
Nos anos 50, por altura do estabelecimento da República Popular da China, verificou-se um novo fluxo de emigração.
Foi nesse contexto que, a exemplo do que se havia verificado noutros países, também a pequena comunidade chinesa residente em Portugal acolheu alguns compatriotas e apoiou a vinda de familiares.
Acontece que Juang tinha deixado na China um filho, Leong Iam, entretanto casado e com duas filhas, e ainda hoje residente na cidade de Wengzhou. Ocorreu, por isso, aos Yuan a hipótese da vinda para Portugal de Leong Iam, a esposa e as filhas. E foi assim que em 1958 Leong Iam e Chi Mei, sua esposa, e as filhas Li Chien Yuan e Hua Chien Yuan, a primeira apenas com quatro anos de idade e a segunda acabada de nascer, mudaram-se para Portugal.
Eis, no entanto, que desta feita o optimismo que tradicionalmente acompanhava Dona Olga não teve confirmação na vida real: a presença do casal em Portugal acabou por ser marcada por inúmeras dificuldades de adaptação, algumas delas tão sérias que, quatro anos depois, o casal entendeu que o melhor seria mesmo regressar à China. Estava-se no ano de 1962, em plena Revolução Cultural!
Trata-se, certamente, de um muito raro caso de opção pelo regresso à China, em contexto idêntico, visto que dificilmente se poderia imaginar aliciante, para chineses de modesta condição, mas voluntariamente emigrados no Ocidente, um mergulho no turbilhão político chinês desses tempos da Revolução Cultural.
Foi, porém, a decisão do casal: regressar à Mãe Pátria, mas sem os filhos – não só as meninas nascidas na China e trazidas pelos pais ficaram em Portugal com os avós, mas também João Lin Yun, o menino nascido dois anos antes no Porto, onde o casal esteve durante um curto período a viver junto de amigos chineses, também negociantes de gravatas, após desentendimentos ocorridos em Lisboa com o patriarca do clã.
A década de sessenta foi simultaneamente o culminar e o termo da actividade que durante anos animou a vida de Juan Y Hing e da esposa – foi em 1961 que aconteceu o primeiro grande dissabor da vida de Dona Olga depois do casamento com Juang: a morte de Armando, único filho da sua ligação com o militar Alfredo Rodrigues, vítima de doença grave.
As leis da sobrevivência
Juang e Dona Olga prosseguiram, apesar disso, a sua actividade comercial e, com clientes espalhados por todo o país, Juang não esmoreceu e decidiu começar a investir na compra de imobiliário nos arredores de Lisboa, mais precisamente na Amadora, expandindo desse modo a sua área de negócios.
Juang faleceu em 1965. Foi praticamente o fim da prosperidade da produção e do comércio de gravatas, doravante conduzido sob a orientação exclusiva de Dona Olga. Mas os proventos já não justificam o seu empenho e em 1968 Dona Olga opta por abandonar esse negócio e prestar mais atenção ao comércio de imobiliário, a que ainda hoje se dedica.
Tal como Dona Olga se adaptou à mudança, assim o fizeram todos os seus familiares, bem como os cunhados Wen e Angelina Chai que, em 1966, já haviam aberto um dos primeiros restaurantes chineses em Lisboa, o “Xangai”, na Avenida Duque de Loulé, deslocando para esse ramo o centro da sua actividade – porque o comércio das gravatas esmorecera e havia deixado de ser um sector maioritariamente chinês, fora-se disseminando por outras mãos, ganhando novos caminhos e outros protagonistas.
Wen Chai faleceu em 1974 e, hoje em dia, Angelina dirige um estabelecimento de retalho em conjunto com a sua filha primogénita Maria do Carmo, a “Casa Chinesa”, na Rua João das Regras, em plena Baixa de Lisboa.
Em Lisboa, Olga Lam prosseguiu o seu caminho. Retirada das tarefas absorventes da vida dos negócios, vive uma vida pacata e confortável. À medida que os anos passaram foi-se integrando da melhor forma possível, ou seja, adoptando hábitos próprios da cultura portuguesa, embora mantendo intactos alguns costumes próprios da sua cultura de origem.
Oriente próximo
Por outro lado, nos últimos anos, com a vaga maciça de imigrantes chineses, Lisboa ficou mais próxima do Oriente e conhece uma fervilhante e crescente actividade comercial da comunidade chinesa espalhada pela capital. E de tudo há um pouco, nalguns casos até, bem mais do que pouco: da venda ambulante, ao comércio em estabelecimentos próprios, de restaurantes a sapatarias, de lojas de revenda de roupa a papelarias, de minimercados a mercearias, onde praticamente há de tudo – fresco, enlatado ou congelado – o que é essencial para a confecção da culinária chinesa mais apreciada, tudo é actualmente possível encontrar.
É esta Lisboa multicultural a que cada vez mais se veste ao gosto de Dona Olga. Por isso, já não a larga: nem a cidade que a acolheu, nem a casa onde, normalmente ao entardecer, à janela do seu terceiro andar voltado para a Praça da Figueira, põe-se a observar a vida que corre num frémito pelas ruas da Baixa Pombalina.