Quando pela primeira vez aterrei no aeroporto de Pequim, em 1996, de coração e olhos bem abertos, fiquei surpreendido ao ver guardas armados a circularem de bicicleta pelas pistas. Mas o tempo passou e o cenário de Pequim mudou muito desde Janeiro de 1997, ano em que aí comecei a viver.
Não pensava lá ficar mais de um ano e, entretanto, já se passaram nove. Descobri uma cidade que nenhum livro, reportagem escrita ou televisiva me haviam jamais dado a conhecer na Europa, antes de ali chegar. Apesar das vicissitudes dos últimos 50 anos, a capital chinesa guardou um estilo arquitectónico, urbanístico e social excepcional, pela vastidão da sua extensão e pela sua antiguidade – quase 500 anos -, com um estilo de vida rico em costumes locais, moldados pela sua história, que a tornam, certamente, um caso único no mundo.
O artista que há em mim apaixonou-se totalmente por essa cidade e pelos seus habitantes. Assim, adoptei o uso de pincéis chineses e a subtileza da tinta da China, misturando as técnicas chinesa e europeia. Como um amante apaixonado pelo seu modelo, não cessei de pintar retratos de Pequim; ou seja, as suas ruas (hutong), as suas baixas casas tradicionais de pátios quadrados (siheyuan), os seus lagos, os templos que sobreviveram
à Revolução Cultural. Os seus habitantes mais antigos, incluindo os manchus, herdeiros da última dinastia Qing, iniciaram-me no simbolismo omnipresente do urbanismo, na arquitectura da cidade e nos seus mais ínfimos pormenores decorativos, tais como os ornamentos das portas características das siheyuan, mas também me deram a conhecer os costumes e as tradições pequinenses. Habitando nos velhos bairros da capital, todos os dias me sentia mais impregnado. Compreendi a riqueza e o sentido de inúmeros elementos da arquitectura de uma cidade que se caracteriza, no entanto, por uma gama de cores limitada e uma certa sobriedade, quando a comparamos com a de outras províncias da China. Depois, fui testemunha involuntária da agonia desse conjunto maravilhoso, sob os efeitos da demolição desejada em nome de um certo modelo de futuro. Vi bairros esvaziarem-se dos seus habitantes, empurrados para longe do coração da cidade; vi as suas artérias serem alteradas, os seus edifícios desmembrados. Segundo alguns observadores chineses e estrangeiros, involuntariamente tornei–me a memória visual (e artística, claro) de Pequim. Prédios de grande altura, fachadas de metal e vidro surgiram no lugar das casas tradicionais de tijolos e telhas cinzentas, rodeadas de árvores do norte da China (salgueiros, romãzeiras, pereiras), elas próprias substituídas por… palmeiras de plástico.
No meio das nuvens de poeira levantadas pelas demolições, graças a uma extraordinária coincidência de circunstâncias, foi-me permitido penetrar na Cidade Proibida e pintar nas zonas interditas ao público, durante dois anos. Nunca saberei agradecer
o bastante às autoridades chinesas e aos amigos que tal me permitiram. Para além de ter sido o primeiro estrangeiro a desfrutar desse lugar mítico, longe das multidões ruidosas de turistas, vivendo ao ritmo das estações, esse acesso exclusivo revelou-se uma viagem inimaginável ao verdadeiro centro de Pequim, um sonho acordado do qual me restou uma colecção de 81 obras que gostaria de mostrar ao maior número possível de pessoas.
Eu não me limitei a gostar de Pequim, eu apaixonei-me por Pequim.