Último fim-de-semana de Janeiro, em Macau. O Sol espreita no céu. Está frio, muito frio, mas o calor humano é do tamanho do mundo. As ruas estão à pinha, é um corrupio de gente que nunca mais acaba. Os carros demoram-se nas filas, as pessoas atropelam-se nas ruas. Nos mercados, os vendedores mudam de negócio e, nos templos, há mendigos em peregrinação à caça da generosidade. É o sonho que os chineses vivem uma vez por ano. Intensamente. A trabalhar ou de férias. Vestem o vermelho e o dourado para receberem tudo aquilo a que aspiram no Ano do Cão.
Há quem pinte a casa, quem apenas a limpe de uma ponta à outra. Há quem não coma carne e quem não deite fora o lixo durante dias. Uns visitam os parentes distantes, outros recebem-nos em casa. Há gostos para tudo, mas há regras. E são para seguir à risca. Assim o ditou a tradição há dois milénios, quando se acredita terem começado as celebrações do Ano Novo Chinês. Mas será que a tradição ainda é o que era? Que o diga quem agora a recria e, por vezes, com muita imaginação. São os pós-modernos chineses. Põem perucas e correm para os templos para adorar os deuses. Querem lai see do Snoopy para celebrar o Ano do Cão e lotam os cabeleireiros por umas novas nuances no cabelo. Nada de mais: manda a tradição que tudo se renove.
Chega ao 22o dia do último mês lunar e os chineses ficam loucos. De uma forma geral, gozam as únicas férias que têm no ano – e são muitos a fazê-lo ao mesmo tempo. Quem trabalha cobra bem o sacrifício. Vem na conta da mercearia, na máquina calculadora do vendilhão. Quem não pagar que passe fome… Todos lhe desejam sorte, saúde e, claro está, dinheiro!
Fecham algumas lojas para férias e abrem tantas outras, muitas vezes com um novo negócio: os artigos típicos da época. Mas há quem sempre os tenha. É o caso de Kenneth Lo. Não cabe nem mais um alfinete na sua loja. As pessoas acotovelam-se para entrar pois “ali se encontra muita variedade”, explica Lei Ka Man, de 20 anos de idade, que leva num braço a irmã e noutro um saco com compras: uma camisola vermelha e uns cartõezinhos com dizeres auspiciosos para pregar na parede. Para trás, deixa o senhor Lo com a casa cheia de clientela. Fica situada na Zona dos Três Candeeiros, uma das mais visitadas nas vésperas do Ano Novo Chinês. Há 20 anos neste negócio e “nunca vi nada assim”. Recorda que nos meados dos anos oitenta houve um pico, mas “nunca se vendeu tanto como este ano”. Elogia Pequim por permitir a emissão de vistos individuais para Macau a cidadãos chineses. Acredita que se “este ano o negócio está melhor do que nunca”, muito se deve a essas medidas e ao progresso de Macau, que tem agora uma clientela com mais poder de compra.
Já o ano passado se tinha apercebido da mudança de gostos, por isso apetrechou bem a loja com as novidades do Continente, mantendo os artigos mais tradicionais nos escaparates. “Temos muito mais variedade este ano, mas as pessoas preferem tudo o que se relaciona com o Ano do Cão”, aquele que agora entra pela vida das pessoas adentro.
Não é só na loja do senhor Lo que a tradição e a modernidade andam de mãos dadas. É um pouco por todo o lado: nas lojas de docinhos há chocolates em forma de lingote de ouro chinês e pedacinhos de carne seca envoltos em plástico transparente, mas também os snacks da moda em tamanho miniatura. Os mais velhos não sabem bem com o que adoçar a boca dos seus parentes mais novos por isso levam para casa um bocadinho de tudo.
“Os gostos mudaram”, garante a senhora Hoi, dona da firma Tin Sin, bem no coração do mercado que preenche as ruas junto aos Três Candeeiros. Há muitos anos que se dedica ao negócio do lai see. Os famosos envelopes, que os casados oferecem aos solteiros na noite de ano novo e no primeiro dia de reinado do Cão, são concebidos na Tin Sin, do design à produção. “ Já no ano passado as pessoas, procuravam um tipo de produto mais moderno”. Para começar, preferem outras cores, que não o tradicional vermelho, e a personalização do produto. Hoi ouviu o recado e não fez ouvidos de mercador. Criou uma gama de lai see com a inscrição de vários apelidos. “São um sucesso!” Para além de vender bem a produção caseira, que responde a muitas encomendas, ainda importa da China o último grito em lai see, aquele que tem o desenho do Snoopy. “Vende bem porque é um cão”. A Yellow Kitty faz-lhe séria concorrência.
Ao fim da tarde, o mercado quase rebenta pelas costuras. Atarefam-se os comerciantes e as pessoas vão passando os olhos pelas bancas de fruta, cheias de laranjas mandarim que vão dar sorte a quem as comprar, vegetais bem fresquinhos e até soutiens vermelhos. Há ainda muitas compras a fazer e os comerciantes vão acusando o cansaço. A senhora Cheong já quase perdeu a voz. Há dias que prepara os doces para a sua banca numa das áreas mais movimentadas do mercado. Estão fresquinhos e têm ar caseiro. “São feitos na noite anterior”, avisa. Vendem tão bem que todos os anos a comerciante chinesa põe de lado os seus habitués, os dumplings e as garrafinhas de leite de soja, para se dedicar à doçaria..
Os nee goo, de coco ou açúcar amarelo, encabeçam a lista de preferências. Conhecidos como bolos do Ano Novo Chinês, são um must em qualquer casa chinesa. Servidos quentes ao pequeno-almoço ou a quem visita a casa, são o grande negócio desta comerciante chinesa. “Vendemos 50 bolos por dia”. Depois de esgotar o stock, corre para casa para preparar a doçaria que vai vender no dia seguinte. Na sua pequena banca, basicamente uma tosca estrutura em metal, pendem ainda saquinhos de plástico com dumplings secos e outros bolinhos que se assemelham a molotofs em pedra. A cor rosa choque não é a mais bonita mas lchama a atenção…
Noutra banca, Au Iong remexe nos cetins de muitos fatos tradicionais. Há-os em todos os tamanhos, cores e feitios. O filho Ang Ang “pediu-me que lhe comprasse um para seguir a tradição chinesa da época”. É tão pequenino que quase se perde entre os tecidos. Gosta do fato de cetim dourado mas o cor-de-rosa deixa-o indeciso. “O melhor é ver qual lhe serve”, diz a jovem mãe medindo-lhe os ombros. E desabafa: “Vai deixar de lhe servir rapidamente, mas não faz mal”. Para o ano, há mais, novo e melhor…
O outro lado da moeda
Durante as festividades do Ano Novo Lunar a generosidade aumenta. Que o diga Ma Kok, um mendigo que até ao grande dia vai andar em périplo por três templos de Macau. Assim toma o pulso ao altruísmo dos crentes.
Faltam dois dias para a noite de ano novo e é à porta do templo… que aborda os peregrinos. Vêm pedir sorte aos deuses. Não é um dos mais famosos de Macau, mas fica junto ao mercado da praça dos Três Candeeiros, onde todos se abastecem para os preparativos das celebrações. Na tarde do dia seguinte, Ma segue o rasto das gentes até ao Templo de Kun Iam, terminando o ano no Templo de A-Ma, que depois da meia-noite mais parece uma colmeia com o entra e sai de gentes. “Aí, sim, vou fazer algum dinheiro”, acredita, sonhando com os moinhos de papel e o fumo da queima de incensos que põe todos a chorar. São aos milhares e isso há-de render umas boas moedas a Ma.
É geralmente à saída dos templos que interpela as pessoas. “Já fizeram as suas orações e saem de coração aberto”. Umas frases auspiciosas bastam para dizer ao que vem. As moedas caem sobre a sua mão e Ma agradece à moda chinesa.
Este é mais um ano que passa sem a família. Há muito que não vê os seus parentes: “A relação não é lá muito boa!”. Acredita que ainda vivam em Hong Kong, de onde Ma é oriundo. Não tem esperança de os reencontrar mas recorda-os com saudade. Sem os parentes para partilhar o momento especial, Ma vale-se da companhia de tantos outros que, como ele, passam sozinhos o Ano Novo Chinês. “Se conseguirmos juntar dinheiro suficiente vamos jantar num restaurante modesto”. Pelo caminho ficam as tradições: a reunião em família e os preparativos para as boas entradas. Mas viverá a época tão intensamente como qualquer outro, garante.