Queremos Falar Português

Seria lógico pensar-se que o fim da administração portuguesa de Macau significaria a morte da língua portuguesa na China. Mas ao fazer de Macau uma plataforma para os países lusófonos, a política de Pequim mudou tudo. Afinal, há um número crescente de chineses que querem aprender a falar português

 

 

A China quer aprender a falar português e para tal conta com o apoio da sua Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), que tem o português como uma das suas línguas oficiais. Desde Setembro de 2002, data em que o Governo Central apresentou a sua estratégia para a cooperação económica com os países de língua portuguesa, que o número de alunos de língua portuguesa não cessa de crescer, tanto por parte de jovem estudantes como profissionais em busca de uma mais valia. Afinal é a falar que nos entendemos e, a julgar pelas afirmações de governantes e empresários, o céu é o limite das oportunidades comerciais entre a China e os países de língua portuguesa. Assim crêem centenas de alunos a estudar a língua de Camões, quer em Macau quer no interior do País, a quem não são alheios os resultados do reforço da cooperação económica.

Dados recentemente divulgados em Macau apontavam que o valor total de investimentos bilaterais superava, até Junho de 2005, os 710 milhões de dólares americanos. Nos primeiros seis meses do ano a China tinha investido cerca de 166 milhões de dólares americanos nos mercados lusófonos quando em 2004 os valores não superavam os 66,14 milhões de dólares. Em contrapartida os países de língua oficial portuguesa tinham já concretizado investimentos na ordem dos 227,6 milhões de dólares de um total de 544 milhões cativados na China e outros 7,1 milhões de dólares em Macau.

São estes números (de um processo ainda na sua fase incipiente) a motivação de alunos como Mário Tam, natural de Pequim, discente da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Macau e decidido a “ajudar a China” a reforçar uma parceria estratégica que ganha cada vez mais importância. Ou de António Chou, natural de Xiamen, na província de Fujian, localizada na costa este do Continente chinês, cuja paixão pelo português e a consciência dos níveis de competitividade de um mercado de trabalho sobrelotado o levaram a candidatar-se ao Instituto Politécnico de Macau. Actualmente a frequentar o curso de intérprete-tradutor, António mantém um diálogo sem grande dificuldade e, embora a curiosidade dos seus colegas de turma o rodeie, não se deixa intimidar. As respostas surgem fluidas e cheias de uma convicção característica da juventude que aparenta. “É precioso”, o domínio da língua portuguesa, afirma peremptoriamente. Mas querendo como que justificar-se acrescenta que “há muitos empresários e industriais chineses que querem investir em África, e no Brasil também, por isso precisam de nós para os ajudar nos contactos”. O entusiasmo contagia os colegas, que o confirmam com um aceno colectivo, unidos por uma sincera esperança de um emprego garantido, de preferência no Continente chinês. No seu projecto vida, António gostaria mesmo, antes de iniciar a sua missão, de aperfeiçoar os estudos, quem sabe, em Portugal ou no Brasil. “Estou a estudar muito para isso”, garante.

A sua colega de turma Margarida Sun é natural de Xangai, a capital económica chinesa, cidade que não dorme, determinada que está em atingir o patamar de pujança que Hong Kong representa para o país, como uma das principais praças do Mundo. A jovem reitera as palavras do amigo, citando o número de empresários seus conterrâneos que estão empenhados ou já a operar no mundo lusófono. Em contrapartida, “não há suficientes intérpretes especializados” e disponíveis  para acompanhar a progressão de contactos e até mesmo no estabelecimento de empreendimentos. “Os nossos colegas todos arranjaram emprego…” murmura, já com as faces ligeiramente enrubescidas pelo entusiasmo. Margarida confessa que foi surpreendida pela Macau que veio a conhecer: “É muito diferente do que imaginei, diferente do resto da China, muito pequena mas muito interessante, os prédios antigos são muito interessantes”. Pouco sabia sobre a história de Macau como entreposto comercial e cultural entre Ocidente e Oriente, celebrou o “retorno de Macau à pátria” de 19 de Dezembro de 1999, assinalado em todo o País, e esperava encontrar em Macau um casino a cada porta. Teve a sorte de desenvolver amizade com Joana Xiao, também de Xangai mas com familiares radicados em Macau há duas décadas, que não se fizeram rogados em servir de cicerones. A um ano de terminar os estudos, Margarida revela que já está a preparar uma relação de endereços de associações comerciais a quem disponibilizará as suas competências acrescidas, mas não deixa de sublinhar a sua preferência por vir a exercer funções no Consulado Geral de Portugal em Xangai, a inaugurar em breve.

 

Oportunidades profissionais

 

Os relatos dos muitos exemplos de sucesso de ex-colegas já graduados e a trabalharem no seio da grande China ou no estrangeiro têm nestes alunos um efeito moralizante. A confirmar os factos, Cândido Azevedo, professor do IPM que leccionou nos últimos anos na Universidade de Comunicações da China, afirma que todos os seus alunos, sem excepção, tiveram facilidade em iniciar uma promissora carreira profissional. E não é sem deixar transparecer a leve ponta de orgulho que só um docente pode sentir pelos seus alunos que dá conta que o último elemento disponível da mais recente formatura foi recrutado pelo próprio Centro Cultural da Embaixada de Portugal em Pequim, depois dos seus pares intérpretes terem já rumado para países como Brasil, Angola e Moçambique, enquanto outros para o interior da China, oferecendo os seus serviços às mais distintas entidades – desde companhias petrolíferas a equipas de futebol chinesas com jogadores brasileiros.

Natural de Macau, Vanessa Lai, faz parte da minoria de alunos residentes a frequentar a licenciatura da Universidade de Macau, dominada por alunos da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim, ao abrigo de um protocolo de cooperação. E embora partilhe a opinião dos seus colegas de turma de que o português é uma valorização no mercado de trabalho da iniciativa privada, seja na China ou em Macau, no seu caso particular Vanessa não hesita em formular o desejo de que os estudos a ajudem a ingressar na Função Pública. Aliás esta é ainda a opção preferencial dos alunos residentes que mantêm presente a convicção de que o domínio da língua portuguesa constitui uma mais-valia para uma carreira na Administração.

Contudo, perante este aumento de interesse pela língua portuguesa, a oferta não é suficiente para satisfazer a procura, cuja tendência será para continuar “sempre a crescer”, como alerta Lei Hong Iok, presidente do Instituto Politécnico de Macau, outra das instituições onde a língua portuguesa é ensinada e por onde passaram largas centenas dos actuais quadros superiores da Administração, incluindo boa parte das chefias bilingues.

Se existe alguém que deixa transparecer a visão interior da paixão chinesa pelo português, é Lei Hong Iok. O relato dos seus percursos é sorvido com a mesma antecipação do chá, servido no seu amplo gabinete. O percurso do presidente do Politécnico pela língua de Camões iniciou-se já lá vão três décadas. Coleccionador de alguns dos mais raros exemplares dos Lusíadas, dignos de figurar numa colectânea museológica, foi formado intérprete-tradutor em Macau. Durante três anos partilhou a formação com mais quatro alunos, tendo como docentes o célebre Gonzaga Gomes, Túlio Tomás e Pereira Dinis, seu mentor. Volta à Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim, onde permanece seis anos como aluno e formador, mas em 1984 os seus serviços de intérprete-tradutor seriam requisitados em Macau, para apoiar as negociações do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês, entidade que tinha a seu cargo o acompanhamento do chamado “período de transição”, nos anos que precederam a transferência de administração, em 1999. Hoje, à frente dos destinos do Instituto Politécnico, assume o ensino da língua portuguesa como “missão primordial” da instituição que dirige.

 

Panorama do ensino

 

O florescente interesse pelo português faz-se sentir desde a escolaridade infantil ao secundário complementar, incluindo o nocturno e programas de formação contínua, afirma o director dos Serviços de Educação e Juventude, Sou Chiu Fai, garantindo ser alvo de crescente número de solicitações por parte dos mais diversos estabelecimentos de ensino, oficiais e privados, de língua veicular chinesa ou inglesa, interessados em iniciar ou expandir os seus programas extra-curriculares de português.

Talvez por ser bilingue, Sou Chui Fai demonstra saber o quão importante se pode revelar para um indivíduo o domínio de uma segunda língua, deixando escapar um longo suspiro quando se lamenta, com franco pesar, de que, com os meios actualmente ao seu dispor, é-lhe impossível corresponder às necessidades actuais. Um facto a ilustrar essa situação é o de que há apenas um professor de português por cada 2,3 escolas, exceptuando as do ensino luso-chinês. Mesmo assim, reconhece que o aumento da procura é, já de si, um dado extremamente positivo e diz depositar grandes esperanças nas soluções que estão a ser equacionadas na reforma do Ensino, actualmente em curso.

Em vantagem comparativa encontra-se a Escola Portuguesa de Macau, a única instituição na RAEM que assegura o ensino primário e secundário em língua veicular portuguesa, área em que, de momento, a oferta suplanta a procura. Detendo os necessários recursos e correspondendo à actual conjuntura, a directora da instituição, Edith Silva, antiga deputada e directora dos Serviços de Educação e Juventude, revelou que está prestes a ser lançado um programa especialmente destinado a leccionar o português a crianças e jovens alunos que seguem os seus estudos noutra língua curricular que não a portuguesa.

Ao nível do Ensino Superior, a oferta de programas em língua portuguesa limita-se, na sua esmagadora maioria, à Universidade de Macau e ao Instituto Politécnico. Este último assume-se, enquanto tutelar da Escola de Línguas e Tradução, como o herdeiro da antiga instituição formadora de tradutores e intérpretes – a Escola Sínica de Macau, criada há 100 anos por despacho régio do então ministro da Marinha e Ultramar de Portugal, Marquês Sá da Bandeira, datado de 22 de Julho de 1905. Para além do currículo de intérprete-tradutor, que pretende actualizar no próximo ano lectivo, o IPM lecciona um conjunto de programas de melhoramento linguístico, dos quais se destaca a especialização na área da linguagem jurídica. É contudo sob a alçada da Universidade de Macau que funciona a Faculdade de Direito, que, com o seu vasto conjunto de programas curriculares, da licenciatura ao doutoramento, congrega o maior número de discentes lusófonos, radicados em Macau ou provenientes de países de língua portuguesa.

Dado curioso em ambas instituições é que, após 1999, as disciplinas de português, mesmo sendo facultativas, foram das opções mais procuradas, tanto por estudantes estrangeiros como locais. Segundo Maria Antónia Espadinha, directora do Departamento de Português da Universidade de Macau, está em alta o número de alunos das diferentes faculdades que optam por tirar a sua segunda especialização em língua portuguesa – uma mais-valia para exercer a profissão além fronteiras.

Quanto à formação contínua em língua portuguesa, é maioritariamente assegurada pelo Instituto Português do Oriente (IPOR), organismo directamente dependente do Instituto Camões, de Portugal, sob a tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e responsável pela gestão da rede de divulgação da língua e cultura portuguesas nesta região do globo. Designado como o espaço de ensino do português por excelência, os protocolos que mantém com diversas entidades locais garantem ao IPOR a mais variada panóplia de alunos – desde estrangeiros à procura do primeiro emprego até profissionais  que pretendem valorizar-se, passando por estudantes universitários. Em todos estes casos encontram-se pessoas das mais diversas nacionalidades.

Para além do Centro de Difusão de Línguas, afecto à Direcção dos Serviços de Educação, e a Direcção de Serviços da Administração e Função Pública, que assistem ao sistemático preenchimento das vagas nos cursos que vão criando, também os alunos do Instituto de Formação Turística que escolheram o português como língua de opção são formados pelo IPOR. A sobrecarga criada pelo surto do número de estudantes foi tal que o actual presidente interino do IPOR, Rui Rocha, se viu na necessidade de aumentar o corpo docente de destacados por Lisboa para leccionar em Macau com um número de contratados locais, num esforço para responder, no arranque do ano lectivo, a uma lista de espera de centenas de alunos interessados.

 

O Português na China

 

Se nos finais da década de 80, altura em que o actual director dos Serviços de Assuntos de Justiça (Cheong Weng Chon) da RAEM era aluno do mestre de linguística portuguesa Raul Pissarra no Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, e o português mais um entre as largas dezenas de idiomas e dialectos de todo o mundo, hoje, a língua de Camões tem o seu espaço conquistado e prossegue a sua expansão. Com a saudade traduzida no cofiar do bigode, o antigo leitor do já extinto Instituto de Cultura e Língua Portuguesa recorda os seus primeiros anos no Oriente, há quase um quarto de século, quando o verde monocromático do vestuário citadino que preenchia as ruas da capital contrastava com a intimidade do campus universitário. “Os alunos eram poucos mas extremamente aplicados, e interessavam-se realmente por aprender…”, lembra o docente, um personagem que personifica a exigência pela qualidade numa possante voz de baixo. Uma voz que será provavelmente das mais ouvidas em língua portuguesa na China – exceptuando talvez Rui Veloso – já que é o autor das cassetes de aprendizagem que ainda incorporam o material pedagógico dos cursos de Língua e Cultura portuguesas.

Hoje a rede de programas de língua e cultura portuguesas está presente para além dos principais pólos de poderio político e económico: desde Pequim, onde desde a década de 80 se manteve um leitor, a Xangai, Hong Kong e, mais recentemente, Cantão. Na capital chinesa, duas das mais prestigiadas instituições de ensino superior leccionam licenciaturas e cursos livres de estudos portugueses. A Universidade de Línguas Estrangeiras e a Universidade de Comunicações formaram numerosos altos quadros do Governo Central, entre os quais o actual vice-comissário do Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros na RAEM. O ensino do português é também assegurado nas províncias de Sichuan – célebre habitat natural do Panda – e Fujian, de onde é originário um quinto da população de Macau.

Além disso, Rui Rocha garante, por outro lado, que existem actualmente instituições de ensino no interior da China a leccionar currículos de língua portuguesa sem qualquer apoio institucional do Governo Português ou da RAEM. Curiosamente, na véspera da entrevista que concedeu para a elaboração desta reportagem tinha sido surpreendido pela visita ao IPOR de uma académica chinesa que acabava de abrir um Departamento de Português no interior da China e se propunha financiar a presença de um leitor do IPOR no seu estabelecimento de Ensino.

 

Corresponder à procura

 

A posição política do Governo português, na voz do embaixador de Portugal na China, António Santana Carlos, é a de que Portugal tem todo o interesse em corresponder aos actuais índices de apetência pela língua portuguesa, sendo previsível, a prazo, um incremento do apoio ao seu ensino no Continente chinês. E embora Macau, como ponto estratégico, possa ser alvo de acções pontuais, o grande esforço será no interior da China. O diplomata não deixa ainda de referir que, devido à política de aproximação de mercados, a própria China tem aumentado o seu apoio à aprendizagem da língua portuguesa.

Ainda que sirvam mercados distintos, as várias entidades formadoras da RAEM pugnam pela criação de um mecanismo de concertação que permita articular uma estratégia de resposta às expectativas. Isto evitando incorrer no perigo da oferta continuar a revelar-se insuficiente e precipitar o fim prematuro do ciclo de apetência por uma procura frustrada. Outra questão consensual é a necessidade da formação contínua dos professores, matéria em que é esperada maior sensibilidade do Estado português, quiçá através do IPOR.

Finalmente, a Universidade de Macau e o Instituto Politécnico deixaram-nos a garantia de que situações como as que se registaram no início deste ano lectivo, devido à grande procura – especificamente a recusa de um total superior a 600 alunos – não se repetirão.

Um caso exemplar foi o do Departamento de Português da Universidade de Macau que, apesar de se ter preparado para funcionar na sua capacidade máxima, durante o corrente ano lectivo de 2005/2006, visando acolher 38 alunos em duas novas turmas, foi totalmente surpreendido com a apresentação de mais de 400 candidaturas, só de alunos locais, isto mesmo depois de terem sido elevados os requisitos de acesso.

 

Um embaixador chinês com formação lusofóna

 

Chen Duqing, actual embaixador da China em Timor-Leste, é um dos mais ilustres e antigos membros do corpo de diplomatas que recebeu a sua formação em língua portuguesa em Macau antes de iniciar a sua longa carreira no espaço lusófono. Foi pioneiro na promoção dos diversos protocolos celebrados entre o Governo de Macau e o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, com vista à formação linguística dos seus quadros.

O diplomata chegou a Macau em 1964, nas vésperas da Revolução Cultural que o obrigaria a interromper os estudos, em 1967. Volvidos quase quatro décadas, é ainda com grande carinho que se refere ao nome de Mário Isaac, o seu estimado professor durante os escassos dois anos e meio de formação intensiva. Só voltaria depois a rever Macau em 1999, para participar nas cerimónias da transferência de administração que, segundo o embaixador, marcariam para sempre a sua carreira. Na altura Chen cumpria já missão diplomática no Brasil, mas a sua presença seria solicitada pelo Governo Central para acompanhar a elaboração do discurso oficial que o Presidente Jiang Zemin proferiu durante aquelas cerimónias.

 

Macau na agenda

 

Desde então Macau tem sido uma matéria constante na sua agenda. Aliás, foi o próprio Chen Duqing, na altura embaixador da RPC no Brasil, que recebeu Edmund Ho e a sua comitiva durante a visita oficial do Chefe do Executivo de Macau a Moçambique, em 2002. Embora ainda não tenha trocado o café pelo simbolismo milenar do chá, poder-se-á dizer que aderiu ao espírito lusófono, não se poupando a esforços para eliminar as barreiras do formalismo por que se pautam a maioria dos seus pares diplomatas. Hoje, devido à geografia acrescida da vontade política de aproximação económica entre a China e os Países de Língua Portuguesa, o embaixador é cada vez mais uma presença habitual na RAEM, onde Timor Leste se prepara para instalar um Consulado-Geral. E não querendo minorar o importante passo político, Chen Duqing pugna ainda pela necessidade da criação de um mecanismo bilateral que permita incrementar as trocas comerciais entre Macau e o mais jovem país do Mundo.

 

L.P.