Não é em vão que se viaja. E isto é tão verdade para as pessoas como o é para os cheiros, os sabores e até o amor. Um prato de comida, por exemplo. Um conjunto de ingredientes, de tipos de fogo, de tempos de apuro, que quando se desloca a outro território tem forçosamente de se modificar. Assim mais ou menos como as pessoas.
Não deixará por isso de manter parte da sua forma original e mesmo alguma da ficção que sempre envolve uma refeição saboreada com gosto. Com a viagem, a culinária sofre mas não deixa por isso de se enriquecer, de se entregar com paixão a outras mãos e outros modos de fazer e de fazer saborear.
E esta é a história de uma galinha que em Macau se fez de África, sendo hoje um dos pratos mais emblemáticos da cozinha deste lugar no Sul da China. Não há turista gourmet que não tenha como obsessão experimentar a famosa Galinha Africana, ponto de paragem obrigatório em qualquer menu de quem preze a sua passagem por Macau e não prescinda de um mergulho prolongado nas diversidades da gastronomia local.
Hoje existe um pouco por toda a cidade, em restaurantes geridos pelas mais diversas etnias. Chineses, macaenses e portugueses, ingleses, indianos ou malaios, muitos apresentam no seu menu a Galinha Africana. É realmente um prato de Macau. E, é claro, uma sombra de mistério, dizem, rodeia o seu aparecimento. Afinal, porquê chamar Africana a uma galinha cujos temperos, aparentemente, nada têm a ver com a comida de África? Outra pergunta: faz-se isto a uma galinha que, afinal, aqui chegou, simplesmente, grelhadinha da silva? A resposta é, obviamente, sim. E vamos tentar elaborar.
Para isso, teremos de recuar até aos anos 20 do século do mesmo nome. Uma época em que estacionaram em Macau soldados vindos das então colónias que Portugal tinha em África. E por aqui marcharam, com a farda portuguesa, mas muito de seus próprios costumes a assombrar-lhes o quotidiano. Claro que o belo frango grelhado era parte costumeira e aplaudida da refeição. Terá sido esse entusiasmo que despertou a curiosidade da gente local?
Seca para o paladar chinês
Tinha, contudo, defeitos… o tal franguinho nas brasas para o gosto chinês. Bom porque picante e crocante, mas demasiado seco para quem de há muito se habituou a acompanhar com molho o omnipresente arroz. Gostavam, é certo, mas a galinha à sua maneira era mais doce… ou marinada no vinho de arroz e servida fria, quase como entrada rica de uma lauta refeição.
O tempo, entretanto, passou. E como tudo aconteceu nunca poderá ser mesmo provado. A verdade é que, na década de cinquenta desse mesmo século, um cozinheiro macaense de seu nome Américo Ângelo fazia sucesso com uma galinha que denominava de Africana. O prato animava as noites do restaurante da Pousada de Macau, um espaço junto da Baía da Praia Grande, mesmo ao lado do Palácio do Governo. Mas já pouco tinha a ver com o frango grelhado dos soldados que há muito tinham partido. Ou teria? O que congeminara mestre Ângelo, cozinheiro que fez história na gastronomia desta terra?
Exactamente… ninguém sabe ao certo. Não era, ao que parece, homem de muitas falas. Menos ainda de revelar segredos. Mesmo Manuela da Silva Ferreira – neta dos donos da Pousada de Macau, hoje dona do Restaurante Litoral – que passou muito tempo na cozinha com o mestre, não garante ter apanhado por inteiro a receita tal qual ele a diariamente aplicava. “Na verdade, a Galinha Africana, tal como hoje a conhecemos, só surgiu quando o Américo Ângelo foi trabalhar para o restaurante do Hotel Lisboa, nos anos 60”, afirma. Também talvez só nessa altura o mestre de cozinha tivera tempo para se dedicar de outro modo aos pratos que confeccionava. Agora, com outro tipo de financiamento, proporcionado pelo advento do jogo nas mãos de Stanley Ho.
Curiosamente, agora que existem outras condições financeiras, Américo Ângelo faz a viagem ao contrário e vai ao continente africano recolher cheiros, formas e sabores. E quando volta estabelece, definitivamente, no Hotel Lisboa a Galinha Africana, prato de Macau.
Cobertura exuberante
E para que não existam dúvidas estamos a falar de um resultado gastronómico que inclui óleo de coco e pasta de amendoim, um molho com assomos de Índia, um delicado toque da Malásia, um suave doce que, finalmente, o concilia com o gosto da China. E, pois claro, o picante, suave ou intenso, ao gosto de cada um. Uma galinha que sofreu todos os tormentos e delícias de uma travessia do mundo para se constituir e ser saboreada nas mesas de Macau.
De prato simples, mero grelhado pincelado a forte picante, passou a refinado, temperado por um molho que testemunha travessias de oceanos. Não deixa por isso de fazer jus ao nome.
Talvez seja porque, por detrás desta nova exuberância, esteja ainda algo de muito original: um cordial, caloroso e bem disposto bem estar, que soldados africanos trouxeram um dia na sua alma até esta cidade.