A arte de beber o chá

Aprender a beber o chá significa dominar uma arte, entrar numa cultura e por um pedaço de história que desperta os sentidos. É um ritual lento, paciente, saboroso... a meio caminho de um vício saudável

 

 

 

O Hotel Mondial (sic) foi o ponto de encontro combinado. Junto à entrada do edifício, que já deve ter tido melhores (e famosos) dias, autocarros ora recolhiam, ora largavam excursionistas do Continente. Imaginei que, se estivesse inserida numa excursão do género, muito da cultura local iria escapar-me, nomeadamente a do chá. No caso daqueles visitantes chineses essa era uma falsa questão. Afinal, se o chá tivesse nacionalidade, seria com certeza chinês.

A Associação da Arte do Chá fica a uns escassos metros do Mondial, do outro lado da rua. Tão disfarçado de loja, o local quase esconde a arte dessa tal bebida. Mas essa cultura está lá, em todo o lado: no mobiliário, nas paredes, nas senhoras que nos recebem, até no material que está à venda. Tudo tem uma história, uma explicação, uma etiqueta que se pode colar. Américo Viseu (ver caixa) abriu-nos as portas desse mundo. Logo à entrada, fui recebida pelo tilintar dos serviços de louça,  pelos murmúrios das conversas e por Achi, que também nos acompanharia na visita. Teria que seguir as suas mãos, gestos e expressões, essenciais no Cha Dao, a arte chinesa de preparar e servir o chá. Américo Viseu foi desfiando a história e as estórias, deu três dedos de conversa (os mesmos que agarram as pequenas taças) e foi saboreando o seu vício.

O gravador, o bloco de notas e as múltiplas canetas que levei (várias, por precaução e paranóia) destoaram em cima da  mesa de chá, sobre a qual estava o serviço próprio, de uma louça branca. Enquanto a água fervia numa chaleira de vidro, sobre uma chama alimentada a álcool, observei Achi. Talvez na casa dos 30, vestia uma blusa em versão moderna dos fatos tradicionais chineses. De facto, a tradição dita que sejam mulheres a servir o chá e que se vistam e penteiem de acordo com as modas requintadas de outros tempos. Para além de um ritual, o Cha Dao é sinónimo de cortesia e, normalmente, é acompanhado por música chinesa. Atrevo-me a acrescentar que é também um elogio aos sentidos. Na verdade, a cor, a forma e o cheiro são fundamentais na cerimónia, daí que o “chá esteja tão próximo do vinho”, como explica Américo Viseu.

Provámos o primeiro aroma com o chá tic kun yam. Cheirei e observei a cor antes da água fervida afogar as folhas. Os manuais ditam para cada tipo de chá, diferentes temperaturas de água. Felizmente, Achi passou por cima deste preciosismo e avançou para a cerimónia com a chaleira quente na mão. Confesso que com tanto papel, caneta e gravador, me perdi nos primeiros gestos.

 

As “garras do dragão”

 

Achi utilizou as “garras do dragão”: numa linguagem descodificada, o polegar, o indicador e o dedo médio para pegar na tigela de chá  que contém a água e as folhas. Com a ajuda da tampa, foi afastando para dentro algumas folhas teimosas que espreitavam. A água trespassou depois um coador, antes de cair num bule. O líquido passou finalmente para as pequenas taças. Quando aproximei as minhas três “garras” para agarrar-me à bebida, Achi, com a ajuda de uma pinça, pegou nas taças e verteu-as. O líquido fugiu pelas reentrâncias de bambu da mesa de chá, foi escorregando por ali dentro até repousar num reservatório da mesa, próprio para esse efeito. Afinal, esta primeira fase servia apenas para aquecer, lavar e desinfectar os copos. Tive que esperar que  todos aqueles passos se repetissem (chaleira-bules-copos, mais ou menos nesta ordem) antes de saciar a sede e a impaciência.  Fui decorando e registando no papel: 40 segundos de espera; copos alinhados; distribuição no sentido dos ponteiros do relógio; três dedos (símbolo de delicadeza, domínio e firmeza). Quando finalmente achei que podia pegar no copo e levá-lo à boca… novas instruções:  “Primeiro, apreciar a cor, cheirar e nunca, nunca engolir o chá sem molhar primeiro a língua e a boca”, avisou Américo Viseu, travando, mais uma vez, os meus impulsos.

Mesmo depois de bebido o chá, de novo o olfacto é posto à prova. Os aromas persistem em colar-se aos recipientes vazios. Fazendo as contas às minhas notas, é possível que o resultado não seja esse, mas, segundo os especialistas, são 18 os passos desta cerimónia do chá tic kun yam. Passos que vão sendo repetidos em várias rondas até saciar o gosto. Foi isso mesmo que fomos fazendo, bebericando o chá e o ambiente.

 

Um mundo de sabores

 

Depois do chá tic kun yam, um dos mais populares de Macau, e quando eu pensava que o bar fechava ali, Américo Viseu surpreendeu-nos com um chá verde, o long jeng. Com ele chegaram novos passos e regras, cheiro, cor e sabor diferentes. Tive que mudar de caneta e o lado da cassete, facto que não me impediu de ouvir novo alerta de Américo Viseu: “o chá verde, nomeadamente o long jeng, tem normalmente repercussões na bexiga”. Mal tinha ainda saboreado o long jeng, já outro chá ocupava a mesa. O pou lei cheira a velho (às vezes tem bolor), é velho (pode ficar dezenas de anos a fermentar) e, curiosamente, são os mais velhos que mais o consomem. Os mais novos costumam dizer que sabe a remédio. Confirmo e acrescento que cheira a terra e tem uma cor alaranjada.

A noite já caíra na rua, mas o tempo não parecia passar por ali. Da mesa ao lado, chegavam sons animados. O grupo ia embora, deixando atrás de si um final de tarde à volta do chá e de pevides brancas. Na nossa mesa, faltava mais uma prova. De um sabor de verão e de um cheiro a flor, o chá de jasmim selou aquele momento.

Já as portas da Associação estavam fechadas ao público quando fui espreitar todos os cantos à casa. As paredes mal se viam, tapadas por prateleiras e armários. De um lado, milhares de bules e copos de louça ou barro; do outro, chaleiras eléctricas e o próprio chá. Estava no interior de caixas metálicas (herméticas) ou em pacotes em forma de tijolo, bolo, bola ou panqueca. Atrás de um biombo, escondiam-se mais mesas de chá em bambu, livros, troféus, galhardetes e caligrafia chinesa pregada na parede. Perdidas por ali, algumas fotos de outros tempos, frequentadores famosos deste templo do chá.

 

Paixão madura

 

Quem o conhece está habituado a ser arrastado para estas coisas do chá. Não se pode, por isso, acusar Américo Viseu de não partilhar a sua paixão. Mas nem sempre foi assim. O gosto pelo chá só nasceu há cerca de cinco anos. Nascido e criado em Macau, este engenheiro esteve sempre mais voltado para a cultura portuguesa. Assim o ditaram o ensino em língua portuguesa e a formação universitária em Portugal. Com o regresso a Macau e a entrada na vida adulta, impunha-se também uma decisão madura e própria de gente grande: a escolha de uma bebida diária, na qual se pode confiar. “A água não tem gosto, o vinho faz dormir…sobra o chá. Pode ser bebido diariamente, faz bem à saúde e dá para manter a forma”, garante Américo Viseu, em jeito de campanha promocional. Já viciado na bebida e influenciado por amigos foi arrastado (também ele) para a Associação da Arte do Chá de Macau. A partir daí, foi só consumir cursos de formação básica, livros, jornais…e, naturalmente, muito chá. Aos 42 anos de idade é viciado e trabalha sempre com um copo de chá ao alcance da mão.